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Bordeaux pelas Águas

23 de Março de 2020

Recentemente escrevi sobre a geologia da França e sobre as características das principais regiões. Falando mais especificamente da região de Bordeaux, vamos abordar o tema drenagem para uma sub-região particular chamada Médoc, ou em latim, “medio acquae” significa entre as águas.

Sabemos que o Médoc, entre outros grandes terroirs, foi forjado pelo homem, procurando entender o tipo de natureza ao redor e dentro dele. Na parte oeste, beirando o oceano Atlântico, temos a formação de dunas que naturalmente tentam avançar pelo continente, a maior e mais famosa é duna Pilat, foto abaixo.

bordeaux pilat

a areia avançando sobre a floresta

Pelos principais motivos, solo com lençol freático alto e o avanço das dunas, os bordaleses foram praticamente obrigados a plantar a maior floresta da Europa ocidental, La forêt des Landes com um “milhão de hectares”, a maioria pinheiros, destinada sobretudo à industria moveleira e também à produção de papel e celulose.

Nas várias regiões do Médoc, a floresta apresenta diferentes cenários, de acordo com sua função. As principais funções em termos de viticultura é barrar os ventos salinos vindos do mar, barrar o avanço das dunas, regular as chuvas e temperaturas no interior do continente, e ajudar o fator drenagem tão importante na região.

foret de landes

do norte do Médoc até a fronteira espanhola

Na formação do Médoc, nasceram alguns lagos importantes na longa batalha entre o mar e o continente, principalmente na costa litorânea. Com esse fenômeno e as idas e vindas da maré no estuário Gironde, a formação dos chamados Marais (pântano em português) foi inevitável. Nesse sentido, foi providencial a construção de canais, diques e todo um sistema de drenagem sob supervisão de holandeses, especialistas em represamento de águas. Os Marais de Lafitte e Marais de Beychevelle, limitam as famosas comunas entre Saint-Esthépe e Pauillac e as comunas de Saint-Julien e o Haut-Médoc ao sul, respectivamente. Com a construção de jalles (canais de drenagem) e estey (pequenos canais), surgem as chamadas “croupes”, fator importantíssimo na região onde ondulações no terreno, semelhante a campos de golfe, indicam boa drenagem e a concentração de cascalho, tão importante no cultivo das uvas, sobretudo a Cabernet Sauvignon. Esse cascalho são consequências de cataclismas antigos ocorridos nos Pirineus (cadeia montanhosa na fronteira espanhola) e também no Maciço Central. Essas pedras têm nomes como Graves Pyrénéennes e Graves Garonnaises, respectivamente.

Na formação de água gerada pelo Atlântico nas imediações da região bordalesa são divididas em 65% na formação de chuvas, 24% que vão para os cursos de água, e 11% infiltrados no solo.

img_7391divisa entre St-Estèphe e Pauillac

Falando um pouco do sistema de drenagem no Médoc, vamos para um dos mais importantes, bem na divisa entre St-Estèphe e Pauillac. Lá temos a separação de dois grandes chateaux, Cos d´Estournel e Chateau Lafite. Aliás o termo “Cos” em dialeto local quer dizer croupe, as famosas ondulações de cascalho.

Pelo mapa acima, vemos que a Jalle du Breuil vem do interior do Médoc recolhendo águas de drenagem para desaguar na Gironde. Antes disso, passa a se chamar Chenal du Lazaret, bem próximo da refinaria de Petróleo. Os lagos e jardins do Chateau Lafite têm a ver com o famoso Marais, dentro da propriedade.

marais de lafiteMarais de Lafite

Quando vemos fotos do Chateau Lafite, percebemos alguns pequenos lagos mais abaixo da propriedade. Fazem parte do Marais de Lafite, uma área pantanosa drenada pela Jalle de Breuil e posteriormente o Canal de Lazaret. Há uma série de drenagens para que tudo funcione em harmonia.

Além disso, temos o canal de Calon e Estey d´Un, um pequeno curso d´água que determina os limites da comuna de St-Estèphe com o Haut-Médoc ao norte. Esse outro sistema permite drenar uma área importante no norte da comuna.

img_7392outro importante Marais do Médoc

Na divisa de St-Julien a sul, entrando no Haut-Médoc, temos o Marais de Beychevelle, importante Grand Cru Classe do Médoc. Esta zona pantanosa é drenada pelo canal do Milieu (meio) que vai desaguar na Gironde. Beychevelle faz parte deste sistema onde temos o canal do Norte, um pouco mais afastado e de alguns metros acima, formando as croupes. Dividindo St-Julien com Pauillac, temos um pequeno curso d´água chamado Ruisseau du Juillac.

img_7394um grande sistema de drenagem

Por fim, um grande sistema de drenagem na parte superior de Médoc, conhecida  como Bas-Médoc. Se St-Estèphe já é conhecida pela dureza de seus vinhos, alta acidez, e solos mais úmidos, argilosos, imaginem essas condições ainda mais ao norte.

Pelo mapa acima, vemos todo um sistema de drenagem em direção ao canal de La Maréchale. Outro sistema mais ao norte, temos Grand Chenal du By. Apenas um dos exemplos onde esses sistemas de drenagem são muito importantes para as condições de terroir.

Essas condições naturais de terroir nem sempre são satisfatórias como clima e solos. Cabe ao homem com sua perspicácia, rever esses conceitos dando novos cenários ao vinhedo para se desenvolver adequadamente. Portanto, sem águas excessivas, descobriram um solo de cascalho bem balanceado e com excepcionais condições de cultivar o melhor Cabernet Sauvignon do Mundo. É por isso que há um ditado nesta região:  “O solo do Médoc muda a cada passo”.

Essas condições de drenagem do terreno, sobretudo na margem esquerda, especificamente no  Médoc, mais do que a morfologia de solos é o fator essencial para o sucesso dos vinhos, pois clima e detalhes de altitude são secundários. Com o aparecimento das croupes é que podemos destacar um Chateau Latour, por exemplo, um vinho de grande distinção, de um vinho sem grandes atrativos num local relativamente perto. Coisas do terroir …

Petrus x Médoc

31 de Outubro de 2017

Mais um belo jantar preparado pelo Chef Laurent Suaudeau, um dos mais clássicos franceses radicado em nosso país, escoltando cinco bordaleses de primeiro escalão num bom momento de evolução em garrafa de safras não tão badaladas. É nessas horas que vemos toda a categoria desses vinhos e sua capacidade de envelhecer longamente em adega. Antes porém, um Champagne e um Meursault fizeram as honras da casa recepcionando os convivas.

champagne e bottarga

Na foto acima, Louis Roederer Cristal Rosé 2005 em Magnum. Um dos diferenciais deste incrível champagne é ser elaborado com maceração pelicular da Pinot Noir, ou seja, um rosé de saignée. Na grande maioria dos champagnes rosés, o método normalmente usado é de assemblage, misturando um pouco de vinho tinto no mosto incolor apenas para tingi-lo devidamente. Além disso, sua categoria Brut está no limite do açúcar residual permitido, entre 11 e 12 gramas por litro. O blend é feito com 70% Pinot Noir e 30% Chardonnay. O vinho permanece cerca de quatro anos sur lies antes do dégorgement. O resultado é um champagne de estrutura, macio, com a elegância da Maison acima de tudo. Mousse muito delicada e um final harmônico, mesclando frescor e uma sensação off-dry. Acompanhou bem uma das entradas (foto acima), lâminas de bottarga com purê de batata, mostrando personalidade. 

bisque de camarão e Meursault. Hum !!!

Nesta combinação tem um pequeno detalhe. O Meursault é do Roulot e a bisque, do Laurent. Isso pode fazer uma enorme diferença. Este Premier Cru Le Porusot tem uma diminuta área de 0,42 hectare. Seu estilo é muito mineral, um toque alimonado, e uma textura não tão untuosa como um Lafon, por exemplo. A porcentagem de barrica nova no processo é bem pequena, da ordem de 15 a 20%. Muito equilibrado, super bem acabado e complementou divinamente uma das entradas (foto acima), panelinha de vongole e camarão. 

Nessa altura do campeonato, todos já olhando para os decanters na mesa de apoio com os cinco vinhos devidamente livres de seus sedimentos.

carlos lafite e margaux 79

safra que pode surpreender

Abrindo os trabalhos, lado a lado, Lafite e Margaux com quase 40 anos. O Lafite 79 mostrou toda a evolução de um grande Bordeaux. Aromas terciários plenos, taninos polimerizados, um toque de cedro muito elegante. Enfim, o vinho mais pronto no momento e com incrível prazer. É sem dúvida, o mais delicado e elegante entre os grandes Pauillac. Já o Margaux 79, surpreendeu positivamente. Uma safra que muita gente não dá bola, mas no caso de Margaux apresenta grande estrutura. Seus taninos ainda não estão totalmente resolvidos. Os aromas muito elegantes do Margaux lembram um toque floral e de sous-bois, entre outros. Já pode ser bebido, mas evolui por pelo menos cinco anos. Tem 93 pontos Parker.

carlos mouton 87 e latour 94

a força de Pauillac

Neste segundo flight, a maior disparidade. Tanto em evolução, como diferenças de safra. Mouton 87 numa safra com muitos problemas. Por ser uma safra relativamente precoce e sem muita concentração, seu melhor momento certamente passou. Ainda longe de qualquer indicio de oxidação, não foi tão longo em boca. Já o Latour 94, foi o infanticídio da noite. Outra safra não muito badalada, mas com 94 pontos Parker. Cor ainda escura, aromas um pouco fechado, foi se abrindo aos poucos. Uma montanha de taninos para ser trabalhada ao longo do tempo. Aromas clássicos com um toque de cassis, couro fino, mineral, e tabaco. Longo em boca, precisa dormir pelo menos mais dez anos em adega. Latour é Latour.

carlos bouef bourguignon

boeuf bourguignon comme il faut

Acima, um dos pratos do mestre Laurent, o clássico cozido borgonhês para cutucar um pouco os bordaleses. Sem nenhum problema de harmonização, quando já bem evoluídos, os bordaleses pegam um pouco a delicadeza da Borgonha.

carlos petrus 80

um dos mitos de Bordeaux

Abram alas para sua majestade, Rei Petrus. É mais ou menos assim que pensamos quando ele chega à mesa. Para começar, esta safra mostra uma boa estratégia para aqueles que desejam prova-lo  pelo menos uma vez. Não é tão cara como outras safras badaladas e tem a vantagem de estar pronto, sem muitas arestas. Com seus 37 anos, é muito prazeroso de toma-lo. Ainda com muita fruta, toques terrosos e de adega úmida, seus taninos são sedosos, e um final complexo. Pela expectativa da safra, surpreendeu positivamente. Além disso, título do artigo, enfrentou sozinho os quatro da margem esquerda com altivez.

Ainda deu tempo de dar um pulinho na safra 99 com dois grandes chateaux, Haut-Brion de Graves, e Ausone de Saint-Emilion.

carlos ausone e haut brion 99

já chegando nos seus 20 anos!

Outra safra que muitas vezes passa esquecida em Bordeaux. Os dois chateaux acima ainda muito novos, provando mais uma vez a enorme longevidade desses vinhos. Haut-Brion sempre prazeroso com seus toques terrosos e de estrebaria. Segue o perfil elegante, não muito encorpado, mas extremamente equilibrado. Devidamente decantado por duas horas, pode ser muito agradável no momento. Já o Ausone, foi outro infanticídio. Um vinho com 95 pontos Parker de taninos abundantes e muito finos. Fruta escura concentrada, um toque mineral esfumaçado, faltando claramente integração entre seus componentes. Lembra um pouco os aromas do Troplong Mondot, outro grande St-Emilion. Com a devida paciência, será um dos grandes Ausones, fechando o século passado.

carlos yquem 87

o melhor final de festa bordalês

Falar que Yquem é um grande Sauternes, um vinho maravilhoso, é chover no molhado. O que novamente surpreendeu positivamente neste exemplar foi a safra 87, outra vez pouco badalada. Um vinho pronto, não muito untuoso, mas com aromas delicados e muito harmônicos. Um toque sutil de mel, caramelo e marron glacé. Final não muito longo, mas extremamente prazeroso.

carlos noval vintage 1970

Madelaine, Porto e Latour ao fundo

Na foto acima, o brinde final. Quinta do Noval Vintage 1970 devidamente decantado. A cor é bem mais delicada que o decanter da foto, no caso Latour 94. Noval é uma Casa de elegância impar. Notas balsâmicas e de frutas em compota permeiam seus aromas. Boca ampla, de grande equilíbrio, e terrivelmente persistente. As madeleines não são de Proust, mas do mestre Laurent. Um Gran Finale!    

Château Palmer 1999: Rondando a Perfeição

8 de Agosto de 2013

Quando falamos de grandes Bordeaux, falamos de grandes Châteaux e grandes safras. Os anos de 1982, 85, 89. 90, 95, 96, 2000, 2005 e 2009 estão neste contexto. Porém, existem safras relativamente boas que normalmente apresentam a vantagem de serem devidamente apreciadas num espaço de tempo mais curto, principalmente para os mais impacientes. Contudo, neste perfil de safra, vez por outra nos deparamos com alguns Châteaux excepcionais, os quais por motivos bem específicos, locais, e muitas vezes inexplicáveis acabam gerando tintos muito acima da média da safra em questão. É o caso deste Palmer na safra de 1999, uma das melhores de todos os tempos deste Château. Somente o grande Lafite foi capaz nesta safra de ombrear-se a este grande vinho de Margaux, segundo o especialista em Bordeaux, o venerado Robert Parker. 

Tive o prazer de degustá-lo recentemente na companhia de grandes amigos e grandes conhecedores neste tipo de vinho, os médicos Antônio Cesar Azevedo Pigati e Sylvio Gandra. Iniciamos os trabalhos pelo grande branco do Loire, Coulée de Serrant, já comentado em post específico neste mesmo blog. Mas chega de conversa, vamos aos fatos.

 taça palmerCor surpreendente para um vinho de quatorze anos

A primeira constatação começa pela cor. Notem na foto acima que não há nenhum sinal de evolução, com um rubi ainda bastante intenso, praticamente sem halo aquoso de borda. Apesar dos aromas iniciais um pouco fechados,  nota-se que ainda não atingiu seu platô que por sinal, será de muito anos. Seguramente até 2025, se bem adegado. Com o passar do tempo, os aromas florais, minerais (mina de lápis ou grafite), de alcaçuz e uma profusão de frutas escuras (mirtilo, cassis, ameixas) tomaram conta da taça. Aromas muito finos e bem delineados. A boca é um caso à parte, encorpado sem ser agressivo, equilíbrio fantástico (apenas 12,5° de álcool), e uma estrutura tânica invejável, tanto em quantidade, como principalmente em qualidade. E este é seguramente, o grande componente que permitirá sua evolução por décadas.

palmer 1999Bordeaux de gente grande

Concordo fielmente com Mr. Parker que deu noventa e cinco pontos para este tinto, beirando a perfeição. Ele pode ser polêmico em vários tipos de vinho, mas em grandes Bordeaux, sua sensibilidade é notável. Como  já provou praticamente todos os Grands Crus Classés em todas as safras do século passado, ele tem a noção exata até onde cada um destes grandes Bordeaux são capazes de chegar. Eu não tenho dúvida, o Château Palmer 1999 é digno de qualquer painel dos melhores Bordeaux do século passado, incluindo os Premiers Grands Crus Classés. É um vinho para a caixa dos sonhos.

Croupes Graveleuses: O caminho das pedras

24 de Junho de 2013

Médoc: Margem esquerda de Bordeaux

Mais uma vez voltamos a Bordeaux, mais especificamente em Médoc, a chamada margem esquerda. De todos os inúmeros fatores que fazem desta região um terroir de grande prestígio, o fator drenagem do terreno é em última análise o que determina a qualidade de um verdadeiro “Grand Cru Classé”. 

Para entendermos melhor esta história, voltemos ao século dezessete, onde engenheiros holandeses, especialistas em represamento de águas, drenaram toda a região do Médoc, até então encharcada de água, dificultando muito a agricultura local. Neste trabalho, foram executadas algumas valas de drenagem, muitas delas  servindo de divisa entre as comunas mais famosas como Saint-Estèphe, Pauillac, Saint-Julien e Margaux. Como resultado, em algumas áreas distintas, observou-se uma suave elevação de terreno (croupe), semelhante ao relevo de um campo de golfe. No entanto, em vez de grama, um solo pedregoso (graves), permitindo excelente drenagem e assim, acumulando água em camadas mais profundas. Para se ter uma ideia deste relevo em termos de altitude, o ponto mais alto do Médoc não passa de quarenta e três metros em relação ao nível do mar, sendo que os melhores vinhedos estão bem longe desta marca.

Graves: boa drenagem e calor para as vinhas

A origem destas pedras remonta milhões de anos, envolvendo cataclismos e eras glaciais, incluindo os Pirineus e o Maciço Central. Com o cíclico movimento das marés no rio Gironde, essas pedras acumularam-se exatamente nestas croupes, dando origem ao velho dita medoquino que diz: “as melhores vinhas são aquelas que olham o rio”. 

Pauillac - Vignes du Château Latour  en bordure de Gironde - Photo Michel CRIVELLARO

Château Latour: Vinhas olhando o rio

Esse fator, de certo modo, acaba influenciando na famosa classificação de 1855 dos crus bordaleses com a polêmica divisão em cinco níveis ou grupos, ou seja, do primeiro ao quinto caldo. Evidentemente, os cinco primeiros do Médoc (Haut-Brion, Lafite, Mouton, Latour e Margaux) não se discute. Seus vinhedos estão plantados nas melhores e mais espessas croupes da região. Entretanto, do segundo ao quinto caldo há muita dispersão entre as comunas.

Começando pelos Deuxièmes (segundos classificados), dos catorze châteaux escolhidos, cinco são da comuna de Saint-Julien e outros cinco da comuna de  Margaux. Embora Saint-Julien não tenha nenhum Premier Grand Cru Classé, as croupes estão bem espalhadas na comuna com châteaux de altíssimo nível. A comuna de Margaux impressiona mais ainda, por não ser tão compacta como Saint-Julien. É uma comuna mais extensa, mas mantém uma ótima distribuição das croupes. Isso é confirmado na classificação dos Troisièmes (terceiros caldos) com dez châteaux de Margaux entre os catorze classificados. Novamente, Saint-Julien e Margaux equilibram-se na classificação seguinte dos Quatrièmes (quartos classificados), onde temos dez châteaux no total. 

Já na última classificação, dos dezoito châteaux Cinquièmes (quintos classificados), doze são da comuna de Pauillac, ainda não mencionada nesta análise. Sabemos que dos cinco Premiers do Médoc, três são desta famosa comuna (Latour, Lafite e Mouton). Entretanto, a natureza não foi tão igualitária na distribuição das croupes, concentrando o que há de melhor para os três châteaux, com as camadas mais espessas de cascalho de todo o Médoc. Com isso, Pauillac é a comuna com maior disparidade entre os châteaux, confirmando outra máxima medoquina: “o solo do Médoc muda a cada passo”.

Saint-Estèphe - Château Cos d'Estournel -Deuxième Grand Cru Classé- Photo Marion CRIVELLARO

Cos d´Estournel: Château em grande forma

Saint-Estèphe, comuna ainda não mencionada, não foi tão abençoada pelas croupes, talvez até por sua posição geográfica em relação ao Gironde (é a comuna mais ao norte do Médoc). Contudo, as duas belas exceções são os châteaux Montrose e Cos d´Estournel. Aliás, na linguagem do Médoc, Cos significa Croupe.

Saint-Estèphe et PauillacJalle du Breuil: divisa de comunas

O mapa acima mostra na parte superior a divisa entre as comunas de Saint-Estèphe e Pauillac através da vala ou canal de Breuil, em francês Jalle du Breuil. Apenas quinhentos metros separam o Chãteau Cos d´Estournel do Château Lafite. Distância suficiente para diferenciar um Premier Cru de um Deuxième Cru. É a morfologia das croupes fazendo a diferença.

Bordeaux: Parte II

4 de Fevereiro de 2010

 

Margem Esquerda

Para começarmos a detalhar Bordeaux, vamos direto ao ponto: Vinhos da Margem Esquerda. Mas margem esquerda do que? margem esquerda do rio Gironde, sempre no sentido de olhar o mapa de Bordeaux, nunca esquecendo dos três grandes rios mostrados no artigo passado (Garonne, Dordogne e Gironde). A rigor, podemos incluir também a margem esquerda do Garonne, mas de fato é o Médoc, o grande astro desta constelação.

Médoc é a contração de uma expressão latina ¨in medio acquae¨, ou seja, entre as águas (Gironde e Atlântico). Essas águas até o século XVII, proporcionaram terras extremamente lodosas na região, impróprias para a viticultura. Duas ações muito importantes foram decisivas para mudar este cenário: plantação de pinheiros em todo lado atlântico do Médoc e um trabalho especializado de drenagem em todo lado direito por engenheiros holandeses (mestres nesta arte). Podemos dizer literalmente que o terroir medoquino foi forjado pelo homem.

As consequências foram extremamente positivas. Os pinheiros que hoje formam a floresta denominada Landes, com mais de um milhão de hectares, limitada a sul pelos Pirineus, barram os ventos úmidos e salinos do Atlântico. Já a drenagem próxima ao Gironde, fez aflorar um solo de cascalho, conhecido também como graves, oriundo de outras eras geológicas relacionadas a cataclismas tanto nos Pirineus, como no Maciço Central, além evidentemente, do próprio leito do Gironde. Devido a vários fatores como topografia e heterogeneidade do terreno, a drenagem em toda a região é bastante variável, dando margem a um velho ditado: o solo do Médoc muda a cada passo. Portanto, o fator drenagem é preponderante aos demais quando se fala de terroir em Bordeaux, notadamente na chamada margem esquerda, principalmente, porque a altitude é muito baixa, tendo como pico, 43 metros acima do nível do mar.

Disso tudo, vem a explicação para as famosas comunas do Médoc, como mostra o mapa acima. É interessante notar que Saint-Estèphe, Pauillac e Saint-Julien estão coladas e Margaux um pouco mais abaixo, isolada. Aqui percebemos claramente a ação da drenagem. O cascalho aflora com grande vigor nas três primeiras comunas e depois desaparece, voltando a florescer na comuna de Margaux.

Em consequência da boa drenagem, solo destacadamente pedregoso, e clima ameno permitindo um período de amadurecimento longo das uvas, a Cabernet Sauvignon sente-se em casa, mostrando todo seu potencial. Essas condições de terroir mostram vinhos extremamente estruturados, tânicos, longevos, sem jamais perder uma elegância singular.

A Cabernet Sauvignon no Médoc é complementada pela Merlot e Cabernet Franc, alem da Petit Verdot e Malbec eventualmente em proporções diminutas, formando o chamado corte bordalês. A Merlot principalmente, procura aparar as arestas da Cabernet Sauvignon, deixando o vinho mais macio e menos austero, sobretudo quando jovem. Em seu longo envelhecimento na garrafa, o famoso corte aportará complexidade aromática e textura diferenciada.

A proporção dos cortes, a vinificação cuidadosa e o amadurecimento criterioso  em barricas de carvalho são mais alguns segredos dos grandes bordeaux.

As quatro principais comunas guardam diferenças importantes entre si, além do estilo imprimido pelo  produtor tanto no campo, como na cantina.

Saint-Estèphe

Esta é a comuna de menor prestígio embora sem nenhum demérito. Costuma-se dizer que seus vinhos não possuem a finesse das demais comunas. Entretanto, há um certo exagero. Aqui notamos um solo um pouco frio, menos pedregoso e mais argiloso. Esses fatores provocam vinhos com mais acidez e certa austeridade, principalmente quando jovens, necessitando de algum tempo em garrafa. São vinhos para quem tem paciência em esperar seus ricos aromas terciários.

Do exposto acima, o vinho que mais emblematiza esta comuna é o Château Montrose, além de seu segundo vinho ser uma boa pedida (La Dame de Montrose). Seu grande rival é o Château Cos d´Estournel. Um estilo mais macio e moderno, mas extremamente elegante.

Pauillac

Para muitos, a perfeição em Médoc. Daqui saem três dos cinco primeiros classificados em 1855: Château Lafite, Mouton e Latour. Elegância enigmática, exuberância e imponência são respectivamente, expressões vagas para tentar definí-los.

Nesta comuna, a proporção de cascalho é alta, favorecendo toda a potencialidade da Cabernet Sauvignon. Os aromas de cassis na juventude e de tabaco na maturidade são notáveis. São vinhos sedutores, mesmo quando jovens, a exemplo do grande Château Pichon Lalande. Para completar, envelhecem com grande propriedade.

Outros châteaux de destaque: Lynch-Bages, Pichon Baron e Pontet-Canet.

Saint-Julien

Apesar de não possuir nenhum Premier Grand Cru Classé, seus vinhos são de tirar o fôlego, além de uma consistência impressionante.  O terroir é muito próximo a Pauillac com uma camada igualmente expressiva de cascalho. Mas como a vida é feita de detalhes, falta o imponderável que sobra em sua vizinhança. Dois châteaux exprimem bem a riqueza, a força e a personalidade desta comuna: o maior dos Léovilles, Château Léoville Las Cases e o irretocável Château Ducru-Beaucaillou.

Château Léoville Barton e Gruaud Larose  merecem destaque também.

Margaux

Elegância e feminilidade são marcas registradas desta comuna. Um pouco mais de cálcario no solo e um cascalho mais fino e abundante tentam explicar estas características. Aromas florais (violetas) principalmente quando jovem e um toque de sous bois quando evoluído, ditam suas principais características. O mítico Château Margaux é atualmente um dos melhores  entre os seletos Premiers Grands Crus Classés. Paul Pontalier, seu grande mentor, faz um trabalho preciso, discreto e contínuo desde 1983.

O segundo nome, quase uma unanimidade, é o exemplar Château Palmer, seguido de perto pelo Rauzan-Ségla. Château Durfort-Vivens pode ser uma boa experiência também.

Considerações finais

Todos os chãteaux mencionados até agora nas quatro famosas comunas do Médoc fazem parte da imutável classificação de 1855 que dividiu em cinco grupos os sessenta melhores vinhos da época, ou seja, premiers, deuxièmes, troisièmes, quatrièmes e cinquièmes crus, no linguajar francês. Esta classificação dos crus classés  está disponível no site oficial de Bordeaux (www.bordeaux.com).

Olhando mais uma vez o mapa acima, as quatro comunas fazem parte do chamado haut-médoc (toda área rosa claro), que inclui também as comunas não tão famosas, Listrac e Moulis.

Muitos châteaux não classificados dentro do haut-médoc tem boa reputação e muita regularidade, sendo portanto, discriminados por não fazerem parte da pomposa classificação aristocrática. Desta injustiça, nasceu a interessante classificação da burguesia, os chamados crus bourgeois. Podem ser excelentes pedidas tanto pelo preço, como pela evolução mais rápida em garrafa. Neste contexto, a menção do château Sociando-Mallet é obrigatória. Vinho de alta distinção com todas as credenciais do estilo médoc. Os châteaux Chasse-Spleen, Gloria e Phélan-Ségur geralmente são pedidas certas.

Em resumo, podemos dizer que os vinhos da margem esquerda fundamentam-se na Cabernet Sauvignon, monstrando-se austeros e estruturados. Portanto, aptos ao envelhecimento.

Fora da classificação de 1855 e da relação de Crus Bourgeois, ainda que anulada temporariamente desde sua última revisão em 2003, as chances de sucesso nos demais châteaux, que não são poucos, tornam-se diminutas. Nestas situações, conhecer a fundo o produtor é fundamental para a perfeita expressão de seu respectivo terroir.

Próxima parada: Graves com seus grandes brancos e tintos.


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