Archive for Maio, 2019

Pato, Canard, Anatra: Harmonização

30 de Maio de 2019

Sejam receitas abrasileiradas, francesas, ou italianas, a carne de pato merece atenção na hora de harmonizar o vinho. Com a maioria das aves como nosso frango, galinha caipira, codorna, perdiz, faisão, nosso peru de natal, vinhos tintos de leve a médio corpo como aqueles elaborados com Pinot Noir, geralmente caem bem. Mesmo alguns brancos mais encorpado, dependendo da receita, também são interessantes. Contudo, quando falamos de pato, apesar de ser uma ave, a ideia de harmonização deve ser repensada. 

A carne de pato tem sabor mais pronunciado, é mais fibrosa, tem maior irrigação sanguínea. Portanto, devemos pensar em tintos mais robustos e de certa personalidade. Neste artigo, vamos dar três exemplos de harmonização, já pensando no inverno que se aproxima, haja vista o arzinho mais frio de outono que já bate em nossa porta.

confit de canard e champignosConfit de Canard

Prato clássico do sudoeste francês, o confit de canard é uma criação antiga num tempo que ainda não havia refrigeração, traduzindo, geladeira. As carnes eram preparadas na própria gordura com sal, processo que prolonga sua conservação. O confit propriamente dito, é a coxa e sobrecoxa do pato confitada na gordura.

É uma carne muita saborosa,  daquelas carnes escuras perto do osso. Além disso, tem uma certa fibrosidade e evidentemente gordura. O acompanhamento pode ser champignons como da foto acima, batatas ao forno, feijão branco, ou um belo risoto. Os tintos da região do sudoeste francês são perfeitos. Tanto o Cahors (um Malbec bem diferente do argentino) ou o Madiran (um Tannat um pouco diferente do uruguaio), são vinhos robustos, de boa acidez e destacada tanicidade. Qualidades mais que suficientes para enfrentar este prato invernal. Os champignons ajudam quando temos tintos de certa evolução com aromas terciários.

Bordeaux de margem esquerda relativamente jovens também podem acompanhar bem. Contudo, os tintos do sudoeste tem aquela rusticidade natural de acordo com o prato. Outras regiões como Ribera del Duero, tintos do Douro, ou Supertoscanos, podem ser boas opções. O importante é o vinho ser robusto, ter boa acidez para a gordura e taninos de certa potência.

magret de canard sauce griottesMagret de Canard

Outro clássico francês, num peito de pato fatiado com aquela capa de gordura, nossa picanha de penas. O ponto correto é mal passado com bastante suculência. Portanto, um cenário perfeito para vinhos com tanicidade destacada e boa acidez para a gordura. O grande problema deste prato normalmente é o molho que tende a ser agridoce. È muito comum incluir frutas vermelhas ou escuras na receita. Portanto, precisamos de vinhos um tanto jovens, de fruta mais evidente, e taninos mais vigorosos. Pensando nos Bordeaux, aqueles da margem direita, calcados na uva Merlot, parecem ser as melhores opções. Um belo Syrah do Rhone Norte é outra pedida interessante. Pode ser um Côte-Rôtie ou um Hermitage de certa idade, não tão potente.

Do lado italiano, um Valpolicella Ripasso de bom produtor como  Masi, por exemplo, é uma bela opção. A glória seria um Valpolicella do Dal Forno Romano, vinho de grande concentração e muita fruta. Um Rioja jovem de estilo moderno é outra alternativa.

img_6043-1Arroz de Pato

Por fim, vamos ao clássico português, Arroz de Pato. Iguaria essa que os durienses reivindicam a paternidade. Sem entrar em polêmica, vamos aos fatos. O prato tem textura macia, mas muito sabor. As azeitonas verdes levantam o sabor do prato, enquanto as linguiças ou o chouriço dão um toque defumado. Evidentemente que os tintos da região dão conta do recado. Preferencialmente, um tinto de certo envelhecimento e taninos mais domados. Neste sentido, os tintos do Dão tem mais elegância, mantendo um bela acidez. Outra boa pedida.

Voltando à Itália, um belo Barbaresco de certo envelhecimento tem acidez para o prato, aromas defumados e taninos mais amansados. Um Rioja Crianza de escola tradicional também é uma boa parceria.

Quanto a vinhos do Novo Mundo, sempre devemos estar atentos a vinhos muito potentes, alcoólicos, e carente em acidez. Do lado argentino, tintos do Valle do Uco costuma ter mais frescor. Do lado chileno, o Alto Maipo, Aconcágua, e Conchagua, também buscam este frescor. Já no Uruguai, os Tannats e seus cortes são bem elaborados, se forem de produtores conceituados como Bouza, Familia Deicas, ou Pizzorno. Substitui a contendo os Madirans do suodeste francês. 

Uma observação importante para estes tintos mais robustos mencionados acima, é a decantação prévia. Seja por apresentar sedimentos, seja principalmente para sua aeração. Os aromas se desprendem melhor e a textura em boca fica mais harmoniosa. O tempo pode variar entre uma e duas horas. Às vezes mais, dependendo do calibre do tinto.

De resto, é curtir este inverno que já está chegando, estação propícia aos grandes vinhos tintos, os tipos preferidos dos brasileiros, mesmo em dias mais quentes. De acordo com a receita, os pratos, cada qual sabe escolher suas preferências adequadas ao bolso de cada um. Bon Appétit!

 

Vosne também tem seu lado masculino!

25 de Maio de 2019

Segundo Pepeu Gomes em sua canção: Masculino e Feminino, todos nós temos nosso lado oposto, aquele que contradiz o que somos realmente. Pois bem, os vinhos da Borgonha têm o glamour da delicadeza, da feminilidade, da sensualidade, sobretudo na comuna de Vosne-Romanée, berço dos mais espetaculares tintos borgonheses. Num agradável almoço no restaurante Gero, um desfile de grandes Borgonhas, mostrou com propriedade que o lado masculino desta comuna abençoada também existe, convivendo em harmonia com a feminilidade onipresente. 

uma viagem no tempo …

Essa história começa com a dupla de vinhos acima, mostrando muitos contrastes e uma viagem pelo tempo. O vinho da esquerda é um dos mais tradicionais monopólios da Borgonha, o clássico Clos des Mouches, localizado na Côte de Beaune. Embora a família Drouhin detenha boa parte da propriedade, a Maison Chanson tem uma parcela significativa de 4,5 hectares. Este exemplar degustado no estilo old school é da safra 1964 com todos seus terciários desenvolvidos, sobretudo toques terrosos, de cogumelos e de chá. Um tinto com uma masculinidade incrível, ora lembrando um Barolo ou Barbaresco, ora lembrando alguns tintos do sul do Rhône. Bem evoluído, mas ainda íntegro. 

O outro lado da moeda é o Volnay Premier Cru do Domaine Chassorney safra 2013. Além de bem mais jovem e uma vinificação mais moderna, Volnay expressa toda a feminilidade na Côte de Beaune. Um tinto de fruta muito limpa, toques florais e especiarias finas, tudo calcado num equilíbrio harmonioso. Portanto, os sexos dos anjos estão apresentados.

img_6128um abismo separa estes tintos

Neste primeiro embate, o maior contraste do almoço, quase um disparate, inclusive na opção sexual. Embora seja um Grand Cru de um mesmo produtor, as safras falam por si e mostram imensos contrastes. Os tintos de 83 são geralmente duros, austeros e masculinos. Além disso, esta garrafa 83 estava um pouco prejudicada com um vinho turvo e um tanto cansado. Mesmo que estivesse em sua melhor forma, não seria páreo para o vinho do almoço, sua majestade DRC Romanée-St-Vivant 1978. Um tinto lendário de Vosne-Romanée cheio de feminilidade e principalmente, jovialidade. Seus aromas de carne, rosas, alcaçuz, especiarias delicadas, permeavam a taça. Um equilíbrio fantástico em boca com final bastante expansivo, sem nunca perder a delicadeza. Um tinto de sonhos para ser colocado na prateleira dos grandes tintos de Vosne na história. O mestre Jayer já dizia sobre a safra 78: este foi o melhor Richebourg e o melhor vinho que fiz, outro tinto lendário. 

img_6130mais alguns contrastes …

DRC Grands-Echezeaux 1988 personifica em estilo e safra o lado masculino de Vosne-Romanée. Uma safra dura para um vinho austero deste belo Grand Cru. Só mesmo o tempo com seus trinta anos para domar esta fera. O vinho já está evoluído, taninos polimerizados, aromas terciários de adega úmida, além de um final arrebatador. Um tinto para quem tem paciência em adega, mas vale cada segundo de envelhecimento. Bravo!

Por outro lado, Madame Leroy fez milagre na pobre safra 1992 para tintos, pois os brancos são espetaculares. Apesar de ser um tinto do Domaine e não da Maison, falta a ele profundidade e maior riqueza aromática num nível Grand Cru. Mesmo assim, é um vinho extremamente feminino e com o toque elegante desta bruxa maravilhosa. 

img_6134um embate de gigantes!

Nesta briga de titãs, a hierarquia foi mantida. Embora o Richebourg 90 estivesse maravilhoso e muito mais pronto no momento, teve que ceder à suntuosidade do grandioso La Tache, um dos maiores vinhedos sobre a Terra, já dizia Hugh Johnson. Richebourg teve que ficar com o lado feminino com muita graciosidade e sedosidade em boca. Já o La Tache 90 tem um toque oriental de incenso maravilhoso, muito equilíbrio em boca, e uma persistência aromática bastante ampla. Deve ainda evoluir em adega e dar muito prazer por décadas. Um tinto marcante!

img_6135cinco anos faz diferença

Duas obras de arte pareadas em nota, 95 pontos cada um. É claro que o 95 não está pronto e acabou sendo o infanticídio do almoço, mas é muito bem elaborado e com futuro brilhante pela frente. Contudo, acho que não chega na grandiosidade do La Tache 90, um tinto que beira a perfeição. Aqui, os sexos se misturam e o que vale é o prazer. Aliás, falando de La Tache,  a safra 99 vai ser lendária como um dos melhores La Tache da história. Lembro-me até hoje do maravilhoso La Tache 62 degustado com muitas saudades …

alguns dos pratos do menu

A polenta com funghi e o tagliarini com molho de costela, fotos acima, foram um dos pratos que casaram bem com os vinhos, sobretudo os de certa evolução. A fidalguia do maître Ismael e toda a equipe do Gero sempre nos conforta. Adendo especial ao sommelier Felipe Ferragone com um serviço de sommellerie perfeito e rolhas intactas, foto logo mais abaixo. 

img_6140Terroir de duas comunas

Bonnes Mares é uma das poucas apelações na Borgonha que divide comunas contíguas. Uma boa parte está em Chambolle-Musigny, mas seu caráter parece ser de Morey-St-Denis. Dujac é um dos especialistas na apelação com os dois exemplares acima de safras muito pontuadas. Servidos às cegas, o 2005 parecia mais jovem, tanto na cor, como nos aromas e taninos mais presentes. Já o 2009, muito mais gracioso, feminino, e acessível no momento. Um flight aparentemente fácil, mas surpreendente, onde a maioria arriscando pela lógica, trocou as safras. Nosso presidente, homem forte da confraria sentenciou: o 2005 é mais austero, mais fechado, de evolução mais lenta em garrafa. Mais um acerto taxativo. 

o único branco e rolhas intactas

No final do almoço já com os queijos, surge um branco da Madame, Domaine d´Auvenay, sua reserva particular de produção limitadíssima. Auxey-Duresses é uma apelação sem grande expressão, frente aos badalados brancos de Beaune. No entanto, em se tratando de Auvenay, nada surpreende. Um lieu-Dit comunal, Les Boutonniers, nas mãos da bruxa, se transforma num verdadeiro Grand Cru. Com seus quase 20 anos, é um branco complexo com toques de evolução e equilíbrio perfeito. Expansivo em boca e de alta classe. Bate com folga muitos Grands Crus de Beaune. 

parceria harmoniosa

Passando a régua, um Yquem 98 para encerrar o almoço. 95 pontos com apogeu previsto para 2050. O vinho encontra-se naquela fase de transição, entre a juventude e maturidade. Doçura bem equilibrada com a acidez, textura macia e envolvente da Botrytis, e um final longo. Foi muito bem com o pudim de pistache da Casa com calda de caramelo.

Por fim, os agradecimentos aos confrades, companheiros de mesa e copo, que sempre nos proporcionam momentos de  descontração, alegria, e imensa generosidade. Que Bacco nos proteja nesta gostosa caminhada aos prazeres da vida!

Vinhos Antigos: Privilégio para poucos

21 de Maio de 2019

Vinho, quanto mais velho, melhor!. Uma das maiores mentiras no mundo de Bacco. Nem cinco por cento dos vinhos elaborados no mundo são aptos a longo envelhecimento em garrafa. Entretanto, uma pequena parcela de alguns chateaux, domaines, sobretudo franceses, tem esse privilégio. Privilégio maior ainda são aqueles poucos mortais que conseguem com certa regularidade provar destas preciosidades. Estas pessoas, além de desembolsarem milhares de dólares ou euros em leilões, adegas particulares oferecidas, e outras fontes não reveladas, correm grande riscos nas falsificações e no próprio estado de cada garrafa. Lembrando que, em vinhos antigos não existem grandes safras e sim, grandes garrafas.

Vencidos os problemas de grana, e muita grana diga-se de passagem, falsificações, e sorte com as garrafas, degustar esses vinhos é como visitar o céu de vez em quando. A maioria das pessoas só ouvem falar de alguns mitos como Petrus, Romanée-Conti, Latour, Margaux, e muitos outros figurões. Alguns mortais, em situações de rara felicidade conseguem provar uma dessas garrafas através de amigos, degustações especiais, ou presentes inesperados. Nessas situações, fica gravado na memória aquela garrafa, aqueles aromas, aqueles sabores, tudo inesquecível. E aí vem a pergunta: será que esta avaliação foi precisa numa análise fria do vinho, sem isenção, ou a emoção de estar cara a cara com o mito fala mais alto?

Seguindo este raciocínio, em degustação recente publicada neste blog, Bordeaux 82, o Paraíso existe!, tivemos quatro garrafas de Lafite 82 em quatro flights distintos. Uma garrafa diferente da outra. Uma espetacular, uma bouchonnée, uma com aromas estranhos, e uma ainda fechada, de evolução lenta. Se cada pessoa pudesse provar uma destas garrafas, talvez não distinguissem essas diferenças por estarem maravilhadas com o rótulo. Mesmo a garrafa bouchonnée, não é todo mundo que reconhece.

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se acertar a garrafa, beba de joelhos!

A safra 85 foi maravilhosa na Borgonha em particular. Lembro-me de um Romanée-Conti desta safra numa garrafa perfeita. Aromas terciários incríveis e inesquecíveis. Na foto acima, um Mazis-Chambertin do Négociant Leroy do Hospices de Beaune 85. Em três oportunidades tivemos: uma garrafa maravilhosa, e as outras duas muito boas, mas não esplendorosa como a primeira.

Dentro deste universo de vinhos de guarda, há alguns já acessíveis em tenra idade, embora possam envelhecer com propriedade. É o caso dos chateaux Haut Brion e Cheval Blanc que são adoráveis em qualquer momento. Basta uma boa decantação. Isso para ficar nestes dois exemplos. 

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este trio tem muita história

Os chamados La-La-Las, foto acima, dispensam comentários num dos vinhos mais espetaculares em termos de longevidade. A idade parece não chegar para essas crianças com aromas terciários incríveis e um equilíbrio de boca singular. Cada qual pode ter sua preferência, mas não vou fazer distinção entre eles, pois já provei vários de todos eles e sempre espetaculares. Para ficar em apenas três safras: 85, 88 e 90. A elegância e sutileza de aromas destes tintos, elevam a casta Syrah numa outra dimensão.

Por outro lado, os mitos Petrus e Romanée-Conti são vinhos difíceis na juventude, um tanto duros, sem muita conversa. Portanto, diante deles, só mesmo o tempo para lapidar essas joias e revelar todo seu esplendor. Muitas vezes, mais de vinte anos são necessários para todo esse processo. Some-se a isso, características especificas de safra que podem atenuar ou intensificar este período de maturação em garrafa. Lembrando do Mouton 1986, este é um caso clássico de difícil  amadurecimento por ser de uma safra de taninos extremamente potentes e de lenta evolução. 

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talvez o único que possa encarar o Petrus de frente!

Poderia escolhe inúmeros Bordeaux já degustados, mas preferi mostrar o Pomerol acima, o grande Lafleur. Vinho introspectivo como o rei Petrus e de lenta evolução. A destacada participação da Cabernet Franc confere elegância, mas a estrutura da Merlot com taninos poderosos lembra o rival maior. 90 é uma grande safra que está ainda em evolução. Precisa de pelo menos duas horas de decantação. Outras grandes safras brilham para este chateau como a mítica 82, 100 pontos inconteste.

Dentro da família DRC, o caso mais evidente e didático quanto à maturação e acessibilidade dos vinhos são os Grands Crus Echezeaux e Grands-Echezeaux. O primeiro, um tinto acessível, sensual, em qualquer idade que abri-lo, salvo características específicas de safra. Já o Grands-Echezeaux é um vinho duro, viril, completamente oposto à feminilidade de seu parceiro de vinhedo. Aqui, as questões de terroir falam mais alto, já que o produtor e a técnica de vinificação são os mesmos. Domaine de la Romanée-Conti possui as melhores localizações destes dois Grands Crus, onde os vinhedos estão muito próximos. Grands-Echezeaux fica na parte de cima do Grand Cru Clos Vougeot, fazendo divisa. As parcelas DRC de Echezeaux ficam imediatamente a norte de Grands-Echezeaux, praticamente coladas em sua divisa. No entanto, sutilezas de solos, relevo e inclinação do terreno, resultam em relevantes diferenças entre os vinhos. Só a Borgonha propicia este mistério. 

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Madeira: um vinho indestrutível!

De todos os fortificados portugueses, o Madeira impressiona pela extrema longevidade, quase imortalidade. O exemplo são os Madeiras do século XIX, foto acima, parecendo não ligar para o tempo. Aromas e sabores fantásticos e um equilíbrio perfeito em boca. Sobretudo o Terrantez, um dos Madeiras mais raros, é da categoria Frasqueira ou o equivalente a um Vintage. O vinho é de uma só colheita e passa pelo menos vinte anos em canteiros (estrutura de ripas que sustentam as pipas para não encostarem no chão), antes do engarrafamento. Este período extremo de oxidação, fazem destes vinhos algo quase imortal.

Na evolução em garrafa de grandes vinhos, o tempo, o silêncio e a escuridão da adega, fazem a transformação de algo incompleto, com arestas, e certa introspecção. Lentamente, os ácidos e álcoois do vinho em meio aquoso se transformam em ésteres, formando o chamado bouquet. Esta é uma transformação lenta e gradual, onde esses mesmos ésteres se decompõem em ácidos e álcoois, recomeçando o ciclo novamente. A não perturbação da garrafa neste longo período é fundamental para o bom andamento das etapas.

Por outro lado, os taninos conjuntamente iniciam um processo de polimerização, formando longas cadeias moleculares. Num determinado momento, por peso próprio esses taninos começam a precipitar-se formando os famosos depósitos, também chamado de borra. Daí, a necessidade de decantação de vinhos antigos, a fim de separar as partes sólidas do líquido límpido. 

Ficamos na França para elucidar o assunto deste artigo, mas a Europa de um modo geral, permite o mesmo raciocínio para outros vinhos e vinhedos, embora o arsenal francês em quantidade e qualidade dos grandes vinhos de guarda seja incomparável aos demais países.

 

 

Petrus e os Três Reis de Pauillac

18 de Maio de 2019

Sabe aquele dia que nada pode dar errado. Você não quer correr riscos, nada de quase, nada de poderia ser melhor, ou seja, você põe o Dream Team em quadra. Para começar a escalação, que tal um Petrus 1955?

O problema agora é colocar companheiros à altura para dar liga. Só tem uma saída: convocar a tropa de elite de Pauillac, a começar pelo Lafite 59, um dos grandes destaques desta safra maravilhosa cheia de craques. Complementando o time, Mouton 82, uma das feras de outra safra mítica, e um bebezinho ainda engatinhando chamado Latour 1996, uma safra perfeita para este Chateau excepcional.

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Para o aquecimento deste timaço, foi convocado Comtes Lafon com seu maravilhoso Montrachet 2013. Seus últimos Montrachets tem estado com notas altíssimas, realmente numa grande fase. Seu estilo de certa opulência, oferece camadas de frutas acajuadas, toques de pâtisserie, textura macia e envolvente. Apesar de tenra idade, um Montrachet delicioso que acompanhou com distinção alguns crudos muito bem executados no restaurante Nino Cucina.

linguado e atum divinamente in natura

Voltando agora ao Dream Team, vamos falar do maior clássico de Pauillac, a disputa eterna entre Latour e Mouton, dois grandes Premier Grand Cru Classe. Na foto abaixo, duas grandes safras em momentos diferentes de evolução.

Tour de Force de Pauillac

Falar de Mouton 82 é falar de um tinto perfeito, 100 pontos inconteste, e uma das safras históricas deste Chateau. O vinho é exuberante em aromas, taninos que deslizam como rolimãs, boca absolutamente perfeita e final longo, macio, luxuriante. Uma bela garrafa em plena forma. Já seu oponente, um monstrinho que destruirá tudo pela frente em 2040, seu apogeu previsto. Um mar de taninos ultrafinos a serem lapidados lentamente nas sonolentas adegas mundo afora. Um Bordeaux à moda antiga onde os tintos não passavam de 12,5 graus de álcool. Equilíbrio perfeito e grande expansão em boca. Será certamente um dos Latours históricos de 2030 em diante. Neste embate você vê claramente como nasce uma estrela e ao mesmo tempo, o apogeu de outra estrela de brilho intenso. Ainda bem que neste caso, não precisamos de anos-luz para atingir o esplendor.

aqui não há perdedores

Mais do que comparar essas duas obras de arte acima, é poder divagar sobre a essência destes respectivos terroirs únicos dentro de si mesmos. Se pensarmos em Pauillac como a grande comuna do Médoc e a força dos vinhos de margem esquerda, os exemplos de Latour e Mouton encaixam-se perfeitamente neste cenário com vinhos pujantes e de grande torque. São exemplos mais que didáticos para enaltecer as características de um grande Pauillac. Já no caso de Lafite, outro Premier Grand Cru Classé de Pauillac, tudo muda, a exceção acontece. Os solos de Lafite tem um cascalho fino misturado com areia e importantes camadas de calcário. Essa configuração confere leveza ao vinho e ao mesmo tempo, elegância, acidez, tensão, dada pelo calcário, fazendo de Lafite o Borgonha do Médoc. É um vinho cheio de sutilezas e um certo mistério brilhantemente demonstrado neste 1959. Um tinto que foi crescendo no decanter por horas, seduzindo cada vez mais os convivas com uma finalização impecável. Um Lafite histórico!

pratos requintados

Fazendo uma pausa para o menu degustado, dois destaques do almoço com os Bordeaux. O tortelli de vitela com cogumelos à esquerda da foto acima, ficou divino com os velhinhos bordaleses, Lafite e Petrus. Enquanto isso, a paleta de vitela ensopada, cozida lentamente com guarnição de polenta cremosa, deu as mãos ao grande Mouton 82 de ricos sabores. Parabéns ao Chef Rodolfo de Santis.

Partindo agora para o grande Petrus 1955, é fundamental ressaltar o prazer de provar um Petrus pronto, sem aquelas amarras que este Pomerol costuma nos receber em tenra idade. Petrus é outra exceção de terroir dentro de Pomerol. Quando pensamos nesta comuna, lembramos de tintos afáveis, macios, generosos e acessíveis em aromas e sabores, os quais são regidos pela presença marcante da casta Merlot. No entanto, o terroir de Petrus busca o ponto mais alto de Pomerol numa solo único de argila azul, de drenagem muito particular onde mesmo em anos secos, o suprimento de água para as raízes das velhas vinhas é garantido. Essa condição faz do Merlot de Petrus uma uva de grande estrutura, austera, rica em taninos, muito mais semelhante a um Cabernet Sauvginon, proporcionando tintos de grande poder de longevidade.

solos: Lafite e Petrus, respectivamente

Voltando aos vinhos propriamente dito, estavam maravilhosos. Os toques de incenso, cedro, ervas finas, especiarias, tabaco, permeavam a taça de Lafite. Boca delicada, elegante, ao mesmo tempo tensa, com uma acidez de aço. Um Pauillac fora da curva. Já o rei Petrus, altivo, toques minerais, terrosos, profundos, um núcleo frutado extremamente elegante. Em boca, uma estrutura tânica magnifica, quase imortal. Persistência aromática expansiva, extremamente harmônico. 

Neste último embate, ficou claramente marcado o lado masculino, viril, de Pomerol, neste terroir único de Petrus. Por outro lado, a feminilidade, a sutileza, de Pauillac, foi enaltecida pelo elegante Lafite. Características antagônicas a seus respectivos terroirs que fazem destes ícones, tintos de enorme personalidade. Um final de prova triunfante.

Fica até deselegante falar dos valores que envolvem estas preciosidades, mas a generosidade dos confrades presentes não tem preço. Obrigado pela companhia, a boa conversa de sempre, e o privilégio de constantemente dividir os prazeres da mesa e do copo com grandes amigos. Que Bacco nos proteja!

Bordeaux 82, o Paraíso existe!

12 de Maio de 2019

O ano de 1982 só não foi perfeito porque nossa seleção do saudoso Telê Santana lamentavelmente não levou o título mundial. Em compensação, Bordeaux teve sua safra gloriosa, generosa, em ambas as margens com uma das colheitas mais fartas de todo o século XX. Podemos pensar em safras como 53, 55, 59 (minha safra), 90, 95, 96, e as minúsculas mas espetaculares safras 45 e 61. Entretanto, os prazeres de provar um 82 são notáveis com vinhos no auge de seu apogeu, sendo que alguns ainda chegando em seu momento perfeito.

As perspectivas desta safra na época não eram muito animadoras pela crítica especializada, dizendo ser uma safra de acidez discreta, não apta a longo envelhecimento. Eis que surge a opinião de um jovem advogado americano contrariando os papas da época, afirmando ser uma safra de fruta esplendorosa, taninos abundantes, de textura sedosa, e com um extrato fabuloso para décadas de envelhecimento. Surge a partir daí, o mito Robert Parker, um americano ditando regras em meio à soberba francesa. Sua influência chegou a tal ponto, que a precificação de cada safra em Bordeaux dependia diretamente de sua avaliação e comentários.

Após este prefácio, tudo isso foi confirmado num memorável jantar no restaurante Fasano com um menu coordenado para quatro grandes flights.

as preliminares do jantar

À espera dos convivas, mesa posta e alguns drinks estimulando os sentidos como o clássico Dry Martini. Na recepção, ainda fora da mesa, uma trilogia de champagnes dando o tom do evento, foto abaixo. Salon 97 ainda uma criança. Cheio de tensão e mineralidade, suas borbulhas exibiam a delicadeza de um dos mais longevos champagnes. Como contraste, mas igualmente brilhante, um Cristal 82 maduro de uma bela safra. Champagne gastronômico, frutas maduras, cheio de brioche e pâtisserie. Borbulhas um tanto discretas, mas com uma textura inigualável. No meio do caminho, um Dom Perignon 2000, sempre elegante, delicado e estimulante. Nada melhor para esquentar os motores!

trilogia em Champagne

Sem mais delongas, vamos ao desfile bordalês com muitas surpresas e algumas decepções, fatos inerentes, sobretudo em degustações às cegas. As garrafas foram abertas e checadas pelo competente sommelier Fábio Lima, sob a batuta do mestre Beato. O maître Almir, patrimônio da Casa, coordenou a sequência de pratos à mesa.

img_6068-1vizinhos num desempenho brilhante

Neste primeiro flight, a primeira baixa. Montrose estava prejudicado com um “elegante ” bouchonné. Já os dois vizinhos brilharam, pois estão lado a lado na divisa de comunas entre St Estèphe e Pauillac. Lafite 82 talvez em sua melhor garrafa na noite, pois tivemos quatro delas, manteve a hierarquia num vinho elegante e aristocrático. Cos d´Estournel ratificou sua nobreza numa das melhores safras de toda sua história. Vinho de uma riqueza impressionante, bem estruturado, e longe de qualquer sinal de decadência. A primeira grande surpresa do jantar.

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o carneiro saltitante brilhou!

Neste segundo flight, mais uma baixa. O La Mission, um dos notas 100 de 82 estava um tanto estranho. Na verdade, seus aromas estavam muito redutivo, necessitando intensa oxigenação. Depois de um bom tempo na taça, mostrou sua elegância. Já o Mouton 82 quando a garrafa é perfeita, é um vinho quase imbatível. Exuberante, rico em aromas e uma textura extremamente sedosa. Outro grande que brilhou foi o Gruaud Larose que só não levou o flight, porque o Mouton estava perfeito. No entanto, este St Julien nesta safra especificamente, é um dos grandes destaques com uma consistência impressionante.

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aqui a hierarquia não foi respeitada

Embora os dois Premiers, Lafite e Mouton, sejam magníficos, estas duas garrafas não estavam em sua melhor forma, provando que em vinhos antigos, a garrafa é que manda e não a safra. Neste contexto, o Pichon nadou de braçadas numa garrafa magnífica. Realmente Pichon Lalande 82 é seguramente um dos cinco melhores  chateaux desta safra com uma elegância, equilíbrio e distinção, notáveis. É de fato, um super Deuxième. 

dois pratos de um menu em quatro atos

Num menu para vinhos desta estirpe, a delicadeza, sutileza e sintonia de sabores, devem andar em sincronismo. Para o primeiro prato, foi pensado algo que aguçasse os sabores terciários dos vinhos com uma Textura de Cogumelo. No segundo flight, para estimular e reavivar as papilas, um tartar de atum entrou em cena com vinhos mais frutados e de taninos mais dóceis. O terceiro prato, foto acima, era um risoto de pato com foie gras, valorizando os bordeaux de textura mais rica. Por fim, cordeiro em crosta de ervas e pistache, foto acima, dando suculência aos vinhos de taninos mais firmes e estruturados.

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St Estèphe brilhou novamente

Novamente uma baixa da degustação. Lafite 82 em sua terceira garrafa, com toques de oxidação e evolução estranha de aromas, algo resinoso. Leoville Las Cases 82, sempre um dos vinhos mais austero da safra, mas de muita sofisticação e sobriedade. Por fim, a segunda garrafa do Cos d´Estournel, magnífica. Levou o flight e se revelou de longe, a maior pechincha da noite. Um vinho que se encontra no seu esplendor com amplo platô de estabilização. Deve ainda dar muitas alegrias. 

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flight arrebatador 

Neste último flight, no apagar das luzes, eis que surge o único 86 da brincadeira. O grande Le Pin numa garrafa esplêndida. Só de peitar o grande Pichon, novamente numa garrafa perfeita, percebe-se a distinção deste grande Pomerol. O único margem direita e o único não 82, levou o prêmio da noite como melhor vinho, na opinião de muitos presentes. O Lafite também foi bem, embora de uma garrafa ainda meio tímida, frente ao desempenho perfeito de seus concorrentes de páreo. Pichon despediu-se glorioso nesta segunda garrafa, já deixando saudades de uma noite de sonhos.

A conversa continuou um pouco mais à mesa em meio a cafés, petits-fours, champagne, e grappas. Agradecimentos a todos os confrades, em especial ao Camarguinho, que com muita classe e fidalguia, proporcionou um encontro descontraído e bastante animado. Que o entusiasmo, generosidade, e cumplicidade, continuem reinando nesta confraria!

Médoc no caminho das pedras

7 de Maio de 2019

A faixa que beira a margem esquerda do Gironde desde o norte da cidade de Bordeaux até seu estuário no Atlântico, tem solos e topografia diversos, capazes de moldar belos vinhos. Este terroir é conhecido como Médoc, região fundamentalmente de tintos. Aliás, dos tintos que fazem a fama de Bordeaux, uma espécie de Côte de Nuits, se compararmos com a Borgonha.

A produção do Médoc é bastante modesta tendo em vista o mar de vinhos que Bordeaux produz como um todo. Estamos falando de apenas 15 mil hectares de vinhas, cerca de pouco mais de dez por cento de toda a região bordalesa. Podemos separar esses vinhos em três níveis de prestígio e qualidade.

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Tintos do Médoc (www.medoc-bordeaux.com)

Composto por oito sub-regiões, o Médoc propriamente dito é a parte menos prestigiada bem ao norte da região. Basicamente, seu solo é mais argiloso, dificultando a boa drenagem , fator primordial no terroir bordalês de margem esquerda. Mesmo assim Chateaux como Potensac e Latour de By são bastante consistentes.

Por hierarquia, as quatro comunas: St-Estèphe, Pauillac, St-Julien e Margaux, são as mais prestigiadas, abrigando os 60 Grands Crus Classés classificados em 1855. Neste microterroir temos as melhores drenagens de terreno com cascalho abundante nas principais croupes (pequenas ondulações na topografia). Seguindo a escala, as comunas de Moulis e Listrac-Médoc estão num nível abaixo. Tem boa localização e drenagem para vinhos de certo destaque como os Chateaux: Chasse Spleen, Poujeaux, Clarke e Fourcas-Hosten. O restante, contornando essas principais comunas, temos a sub-região conhecida como Haut-Médoc. Mais consistente que a sub-região Médoc, mas ainda assim com grande diversidade na excelência dos fatores de terroir. Podemos citar com segurança alguns Chateaux como: La Lagune, Cantermele, Camensac, D´Agassac, e o confiável Sociando-Mallet.

sociando mallet vignoble

Chateau Sociando-Mallet

ondulações no terreno (croupes)

subsolo pedregoso de excelente drenagem

Para reger essas comunas temos como parâmetro a imutável classificação de 1855 e os chamados Crus Bourgeois, classificação consistente até 2003 onde a partir desta data, tivemos mais confusões do que consenso. Enfim, seguem os sites destas duas categorias:

http://www.grand-cru-classe.com (atualmente em manutenção)

http://www.crus-bourgeois.com

Dados comparativos

Os Crus Bourgeois perfazem de 250 a 270 Chateaux todos os anos, dependendo do ano específico. Isso dá um total aproximado de 30 milhões de garrafas por safra. São aproximadamente cinco mil hectares de vinhas, respondendo por um terço da produção do Médoc. As sub-regiões do Médoc e Haut-Médoc ficam com 90% desta produção, restando 10% para as demais comunas. Em resumo, é uma categoria de vinho que procura valorizar o Médoc em sua essência, já que as comunas mais famosas têm vida própria.

A sub-região do Médoc, porção bem a norte da região, é responsável por um terço da produção de todo o Médoc, contando com forte prestígio dos Crus Bourgeois, pois não há nenhum Grand Cru Classé na região. Os preços podem ser um grande atrativo.

Praticamente, a mesma história se repete com a sub-região do Haut-Médoc em termos de números e proporção de Crus Bourgeois. Aqui já temos cinco Grands Crus Classés fazendo parte dos Chateaux. 

Partindo agora para as comunas, temos:     

Margaux – 1500 hectares – 9 milhões de garrafas – 21 Grands Crus Classés 

St-Julien – 900 hectares – 6 milhões de garrafas – 11 Grands Crus Classés 

Pauillac – 1200 hectares – 7 milhões de garrafas – 18 Grands Crus Classés

St-Estèphe – 1200 hectares – 8 milhões de garrafas – 5 Grands Crus Classés 

Moulis – 600 hectares – 4 milhões de garrafas – 15 Crus Bourgeois

Listrac-Médoc – 800 hectares – 2,5 milhões de garrafas – 14 Crus Bourgeois

Em resumo, as comunas respondem por um pouco mais de um terço da produção do Médoc com forte participação dos Grands Crus Classés, aumentando sobremaneira o nível de qualidade e consequentemente, os preços.

Quanto aos Grands Crus Classés especificamente, os 60 Chateaux representam  em torno de 10% da produção de todo o Médoc, cerca de 10 milhões de garrafas, tendo forte participação nos vinhos das quatro principais comunas citadas acima.

Portanto, nos três níveis dos vinhos do Médoc num universo de 100 milhões de garrafas, 10% correspondem aos Grands Crus Classés, a elite dos vinhos. Pouco mais de 30 milhões de garrafas correspondem aos Crus Bourgeois, vinhos de bons preços se bem escolhidos. E finalmente, mais da metade de chateaux mais comuns, sem grande expressão, mas ainda assim, com boas surpresas se bem garimpados.

Para tanto, é bom prestar atenção aos rótulos. A apelação Médoc é a de maior risco, onde é preciso conhecer bem o chateau em questão. Já a apelação Haut-Médoc é mais segura, sobretudo se for uma grande safra. Já a menção “Grand Cru Classe” acompanhada das apelações St-Estèphe, St-Julien, Pauillac, ou Margaux, é bem mais segura, embora não sem riscos. Peculiaridades de safra e fase do chateau que pode variar ao longo da história, são detalhes a serem considerados. 

 

Brancos e Tintos de mesmo Esplendor

6 de Maio de 2019

Entre brancos e tintos, o destaque vai para os grandes vinhos, independentes de cor, tipo, ou estilo. Os brancos primam pela destacada acidez e os tintos por seus finos taninos. Isso mais uma vez ficou provado num delicioso almoço no restaurante Bela Sintra, Jardins, São Paulo.

Riesling seco e mineral

O almoço começou arrebatador com um Riesling seco, extremamente mineral, e de grande elegância aromática. Seco sem ser austero, seus aromas minerais, florais e de frutas brancas delicadas permeavam a taça. Boca imponente, de bom corpo, e de uma acidez refrescante, marcante, na medida certa para estimular um gole a mais. Persistente, fino e expansivo em seu final de boca.

Estamos falando de uma propriedade histórica, Schlloss Johannisberg localizada no Rheingau, região vinícola alemã das mais nobres e eterna rival dos vinhos do Mosel. Este terroir é extremamente bem definido, começando com uma abrupta mudança de direção do rio Reno quando caminha para o norte. Num determinado ponto, faz uma curva marcante para oeste, onde a face norte do rio encontra um grande talude perfeitamente orientado a sul, protegido pela cadeia de montanha Taunus. Esta propriedade monástica, de fundação milenar, é uma espécie de Clos de Vougeot alemão por sua importância histórica. É de grande destaque seus Rieslings nos mais variados estilos, sendo creditado a origem da uva nesta propriedade. Seus solos são complexos numa mistura de argila, quartzo, e loess, este último originário  de solos a partir da ação dos ventos. A propriedade é muito bem localizada na parte central do Rheingau com aproximadamente 30 hectares de vinhas.

rheingau schloss johannisbergSchloss Johannisberg no centro do mapa

Explorando um pouco mais o rótulo alemão, percebemos que a uva é Riesling e que o vinho é seco (trocken). O mais importante é a sigla GG (Grosses Gewächs) que equivale ao termo Grand Cru na Borgonha, a classificação máxima de um vinhedo.

classificação alemã VDPpirâmide de classificação VDP

Conforme mapa acima, VDP é a mais rígida classificação alemã para vinhos de qualidade que significa Associação alemã de produtores de qualidade com predicados (procurar pelo símbolo da águia com cacho de uvas na cápsula da garrafa). Na pirâmide acima, GG significa que estamos no topo com vinhos secos de alta qualidade.

Para completar a explicação, Erste Lage significa vinhedos Premier Cru, também muito bem localizados. Descendo a pirâmide, Ortswein significa vinhedos comunais, um pouco mais genéricos, e finalmente, Gutswein, vinhedos genéricos sem maiores especificações, mas ainda de qualidade comprovada, de acordo com sua classificação. Numa comparação com a Borgonha, se pensássemos no produtor Armand Rousseau, seu Chambertin seria um GG, seu Clos St Jacques seria um Erste Lage, e seu Gevrey-Chambertin comunal seria um Ortswein. Portanto, bebemos um Grand Cru. Ufa! vinho alemão é duro de explicar!

img_6044dois gigantes em magnum  

Fazer frente a um Chateau Latour 1990 em magnum, é tarefa para poucos, mesmo que essa outra garrafa também seja magnum. Foi o que aconteceu no embate acima com o excepcional Harlan 2001, 100 pontos Parker. Mais um 100 pontos para esta vinícola espetacular, colecionadora de notas máximas. O corte bordalês é típico de margem esquerda com predominância de Cabernet Sauvignon, sobre as demais uvas, Merlot, Cabernet Franc e Petit Verdot, semelhante ao grande Latour. 

Falando primeiro do Latour 90, um vinho sempre com uma consistência impressionante e seu aroma de couro fino, pelica nobre, quase inconfundível. Não está na galeria dos Latours históricos como 82, 61, 70, 95, 96, ou 59, mas mesmo assim, é um baita vinho com 95+ pontos Parker, merecidamente. Seu corpo não é tão denso como costuma ser, mas tem boa evolução em garrafa com aromas terciários se formando de forma brilhante. Seu equilíbrio é perfeito com final elegante e de grande distinção. Comparado ao 82, mais uma vez constatamos que a safra 90 é muito boa, mas não chega e nem vai chegar ao esplendor de 82, talvez a melhor safra do século XX, tal a quantidade de Chateaux que elaboraram vinhos históricos. Safra pródiga em quantidade e qualidade.

Passando agora para o Harlan, um monstrinho engarrafado. Um vinho com uma força extraordinária, nivelado sempre por cima. Encorpado, glicerinado, textura de taninos extremamente fina, a despeito da quantidade impressionante. Aromas poderosos de frutas escuras, chocolate, e notas de tabaco. Um nariz bordalês que impressiona, mostrando que é o Latour das Américas por sua imponência notável. Um vinho longo em boca, expansivo, vislumbrando décadas de guarda.

pratos marcantes do Bela Sintra

O bacalhau à lagareira com o Riesling, e o arroz de pato com os tintos, ficaram muito interessantes. O Riesling tinha força e textura para o prato, além da acidez do vinho enfrentar a gordura da iguaria de forma admirável. Já o arroz de pato com seus sabores marcantes tinham perfeita sintonia com os sabores do vinho. Pratos tradicional do sempre consistente restaurante Bela Sintra.

img_6045um bebê de futuro brilhante

Mais um Yquem de 100 pontos nasce, confirmando a glória de um dos mais espetaculares vinhos doces do mundo. Um joia liquida com quase 150 gramas de açúcar residual, perfeitamente equilibrados por uma acidez refrescante. Vinte meses de barricas novas foram suficientes para lhe dar equiibrio e complexidade. Percebe-se a Botrytis por seu perfil glicenirado e textura macia. Longo em boca, seu poder de fruta é imenso e de grande harmonia. Deve evoluir bem por décadas, ganhando complexidade e harmonia perfeitas. Este vinho não está nem no site do próprio Yquem, mas nas palavras de Pierre Lurton é uma das safras mais espetaculares elaboradas por ele. Foi trazido debaixo do braço por um nobre confrade.

Enfim, vinhos de grande estirpe, elaborados de maneira diferente, uvas diferentes, e terroirs diferentes, mostrando mais uma vez a diversidade desta bebida milenar. Agradecimentos aos confrades pela companhia, boa conversa, e imensa generosidade. Que Bacco nos proteja! 

 


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