Archive for Junho, 2024

Às cegas entre grands crus de Chablis

15 de Junho de 2024

Chablis é um dos mais inconfudíveis vinhos do planeta vitis e talvez o que mais sofra nos últimos anos do aquecimento global. A sutileza, o nervo preciso, os aromas quase etéreos, o sabor pulsante sem ser agressivo. A essência sem máscaras, sem subterfúgios. Se terroir parece algo inexplicável, Chablis personifica este conceito como nenhum outro território de vinhas.

Localizada no meio do caminho entre Beaune e Paris, a região tem uma particularidade em relação aos vinhos da Côte d´ Or: o clima é mais frio, rigoroso O solo contém uma mistura judiciosa de argila e calcário, culminando no que chamamos Kimeridgiano (Kimméridgien), fosséis marinhos calcinados no marga, característicos das porções de terra dos grands crus da região.

Em 5,8 mil hectares, apenas 1,5% da produção total é destinada aos sete grands crus, que são: Blanchot, Bougros, Grenouilles, Valmur, Preuses, Vaudésir, e Les Clos.


Em relação aos grands crus, segundo Clive Coates e Jasper Morris, dois dos mais profundos conhecedores e historiadores e degustadores da região:


Bougros
O mais a oeste é um vinhedo íngreme, criando vinhos mais suaves e gordos. São mais amigáveis ​​na juventude do que alguns dos Grand Crus.

Preuses
No geral, tendem a ser vinhos elegantes, redondos e com aromas delicados.


Vaudésir
É chamado por alguns de “Vale do Vaudésir”, pois a colina Grand Cru foi erodida para formar um pequeno vale. A erosão significa que partes da vinha têm mais argila no solo do que a maioria dos Grand Crus. O resultado é um vinho de equilíbrio, com elegante mineralidade e concentração de fruta.


Grenouilles
O menor dos Grand Crus, Grenouilles está localizado ao longo da margem do rio Serein; o nome da vinha na verdade significa “rãs”. Como as vinhas estão voltadas a sul, recebem sol o dia todo, criando um vinho maduro e frutado.

Valmur
Situado entre Grenouilles e Les Clos, Valmur está também em um “mini-vale”, esculpido pela erosão. Muitas vezes precisa de tempo para envelhecer, já que esses vinhos ácidos são poderosos e austeros na juventude.

Les Clos
Dos Grand Crus, Les Clos é o maior, mais conhecido e indiscutivelmente o melhor. Tem um declive aberto virado a sudoeste, permitindo que a vinha tenha exposição ao sol quente e abundante da tarde. Isso é importante para o amadurecimento em Chablis frescos e dá aos vinhos Les Clos aquele inebriante empurrão entre opulência e acidez fina.

Blanchot
Mais a leste dos Grand Crus, Blanchot contorna a encosta da colina para o lado sudeste, ao contrário de seus vizinhos. Isso torna os vinhos Blanchot menos frutados e poderosos, mais leves e mais ácidos, com notas cítricas ácidas, esses vinhos amadurecem mais rápido.

Às cegas

No Bistro de Paris, foram selecionados cinco grands crus de safras recentes (apenas um 2021 e quatro da safra 2020, considerada excelente para a região). Participaram da degustação: Vaudesir, do domaine Gautheron, importado pela delacroix e o único 2021 do painel; Valmur e Les Clos do Domaine Moreau, da Sonoma; Droin com seu Hommage a Louis (havia uma disputa entre a aduana francesa e a legislação local em relação se o vinhedo estava mesmo em les Clos, em maio ela foi resolvida e a partir da safra 2023 ele poderá usar o vinhedo grand cru mais famoso no rótulo), trazido pela Mistral; Valmur de Bessin Tremblay, da Clarets. A degustação foi feita em taças riedel wings, importadas pela Mistral, detalhe importante. Grandes vinhos merecem taças apropriadas.



O resultado? A safra 2020 produziu grandes vinhos e o exemplar da 2021 aponta que essa safra tem muitos predicados, apesar de ter sido despercebida pela mídia, que se apaixonou pela 2022. Vamos aos vinhos: às cegas, Valmur de Moreau e o Vaudesir de Gautheron dividiram os dois primeiros lugares. Também são os dois mais baratos no painel, com preços ao redor de 750 reais a garrafa (em um momento em que borgonhas sobem de preço a cada safra e o câmbio chegou perto dos R$ 5,5, esses dois são excelentes qualidade-preços). Às cegas, achei que fossem os dois clos presentes à degustação, que teve o Droin em terceiro lugar, Bessin Tremblay com seu Valmur em quarto, e Moreau com seu Les Clos em quinto. Mas não há perdedores: foi uma degustação de alto nível, com vinhos que pontuariam acima dos 93 pontos, se vinho fosse basquete, e o escritor, estatístico.

Campeão da noite

Os quatro produtores são de destaque na região e estão entre os melhores que circulam os guias fora as duas unanimidades: Raveneau e Dauvissat, cujos vinhos na juventude podem ficar para trás, mas com o tempo ganham camadas e camadas que só os grandes atingem, sejam os premiers crus, sejam os Les Clos de ambos, que às cegas podem se transformar em uma guerra de foice na escuridão, como sempre dizia o mestre Nelson. Eu participei de uma dessas e a cada gole mudava de opinião.

Depois de bebidos solo, foi a vez da harmonização enogastronômica. Primeiro, foram ostras frescas do litoral paulista. O forte caráter iodado das ostras frescas, além da salinidade, exige mineralidade e os chablis são uma alternativa clássica e perfeita, ainda mais nesse tipo de degustação em que se trata de grands crus de primeiro nível. Os grands crus da região ainda são ótimos para ostras gratinadas, cuja textura e sabor são mais ricos. ((As opções à mesa para ostras também podem se estender dos clássicos Muscadets do extremo oeste do Loire (prefêrencia pelos de Sèvre et Maine sur lies), passando por Pouilly-Fumé (outro extremo do Loire), Savennières (Chenin Blanc bem seco), ou para quem prioriza sofisticação, um champagne Blanc de Blancs (elaborado só com Chardonnay)). 

Depois os chablis ainda ganharam a companhia de um ótimo peixe no sal, mostrando toda a versatilidade que a chardonnay do terroir chablisienne oferece nas mãos certas.

Uma noite para repetir a cada safra!

James Bond e a licença para beber

15 de Junho de 2024

O último filme do agente secreto com licença para matar, o vigésimo quinto da série, com Daniel Craig em sua última aparição como James Bond, teve um final tão impactante que até hoje não consegui rever, mas foi brindado pelo espião, nascido na guerra fria e agora às voltas com terroristas sem pátria, com uma garrafa de Château Angelus, bebida quando ele chega de surpresa à casa de M, que estava preparando o jantar. O mesmo bordeaux tinha sido o escolhido da estreia de Craig no papel, em “Casino Royale”, brindada primeiro com Bollinger, depois com o chateau de Hubert de Boüard. No trem em que o leva a Montenegro, onde irá disputar partidas de pôquer, Bond pede uma garrafa de Château Ângelus 1982 para acompanhar o cordeiro que ele e Vesper comem.

Na hora de gravar “Casino Royale”, os produtores da série ligaram para o proprietário do renomado château, classificado como um premier cru classe B de Saint-Émillion, Hubert de Bouard sugeriu a safra 1990, outra das maiores da história. Agradeceram, mas fizeram um pedido: James Bond tem um apreço especial pela safra 1982, que começa a ganhar maturidade agora. Pedido aceito. Bouard veria as garrafas de Ângelus 1982 subirem de preço depois da aparição, segundo reportagem da inglesa Decanter no fim de 2006, quando “Casino Royale” chegou à telona.

Mas a maior paixão de Bond, além do dry Martini, são os champagnes. Aí sobra diversidade: em “Dr. No” e em “Goldfinger”, Dom Pérignon (LVHM do Brasil) é a eleita, sendo que Bond revela sua preferência pela safra 1953. No início de Goldfinger, quando está na cama com sua primeira loira do filme, ele fica indignado com a temperatura da garrafa. Ameaça levantar da cama, mas ela quer que ele continue. “Há coisas que não se podem fazer na vida, uma delas é beber Dom Pérignon na temperatura errada”, diz Bond, indo para a geladeira, onde em segundos é atingido na cabeça pelo seu mais carismático vilão. Meu Bond e filme preferidos fazem com que a Dom Pérignon 1953 (em condições pristinas) seja o vinho que eu escolheria na última refeição. Estou também na companhia de Marilyn Monroe.

Em “Moscou contra 007”, Bond, no luxuoso vagão restaurante do trem que corta os Bálcãs, pede para acompanhar seu linguado grelhado um Blanc de blancs (uma champagne feita apenas com uvas brancas). Na mesa, vem a Comtes de Taittinger, da Taittinger. Já o acompanhante na mesa pede um chianti. Ao que o garçom atônito retruca: “chianti branco?”. “Não, tinto”. Seria a senha para descobrir que o loiro alto que se fazia passar por amigo no fundo era um espião inimigo.

Outra preferência no mundo dos espumantes é a Bollinger, que até confecciona rótulo e assemblage especiais para um vinho dedicado aos fãs da série e das borbulhas mais preciosas do mundo. Depois de ter sido mantido em solitária, espancado, ficado sem comida no início de “Die another Day”, Bond redobra o fôlego, foge da prisão, cruza o mar e chega a um luxuoso hotel de Hong Kong, onde faz uma série de pedidos ao gerente. No fim, frisa: “e, não se esqueça, uma garrafa de Bollinger 1961, se você tiver uma ainda.”

A conta? Por 25 filmes, foi para a rainha. Agora irá para o rei.