Archive for Novembro, 2023

Brions, mitos franceses

12 de Novembro de 2023

(publicado originalmente no @pisandoemuvas em outubro de 2022 na vinda de Guillaume ao Brasil)

A produção de vinhos na França tem alguns mitos que pairam no lugar mais alto da constelação de estrelas que posicionam o hexágono como o terroir mais cobiçado do planeta vitis. Em uma terra de tanta tradição e de tantas histórias, em Bordeaux, a primeira estrela no firmamento chama-se Haut-Brion. Embora com as primeiras vinhas plantadas em 1423, lá se vão quase 500 anos, quando o vinho despontou em 1525, sendo reverenciado nas cortes inglesas da época e a partir dele promovendo-os pelos quatro quantos do mundo.

Na polêmica classificação de 1855, o único fora do Médoc fazendo parte do seleto grupo dos cinco primeiros da lista era o Haut Brion, cuja localização é muito particular, nos subúrbios da cidade de Bordeaux. O terreno localiza-se a 27 metros acima do nível do mar com camadas profundas de cascalho importantes e bem posicionadas. Areia e argila predominam no solo, favorecendo o bom desenvolvimento da Merlot, cepa de grande importância no corte, pareando a composição com a robusta Cabernet Sauvignon. Pequenas parcelas de Cabernet Franc e Petit Verdot completam a sinfonia. Esse corte favorece tanto a maciez e sensualidade de aromas, como a precocidade do vinho, sem aquela austeridade típica dos tintos do Médoc, sobretudo quando novos. Evidentemente, é peça importante e principal na tradicional classificação de Graves de 1959, juntamente com seu concorrente direto e vizinho ilustre, o destacado La Mission.

Degustação em outubro de 2022/ Foto Nadia Jung

Outra particularidade importante é sua versão homônima em branco. Praticamente uma unanimidade, é o melhor branco seco entre todos os Bordeaux, balanceando de forma magistral as uvas Sémillon e Sauvignon Blanc, fermentadas em barrica. O vinho permanece nas barricas (50% novas) entre 9 e 12 meses. É bom lembrar que as vinhas para esses vinhos brancos somam menos de três hectares (2,87 ha), contra 48 hectares para os tintos. Sem mais delongas, vamos aos vinhos.

Haut Brion está com o domaine Clarence Dillon desde 1935. A família, do príncipe de Luxemburgo, ampliou sua constelação de estrelas, ao adquirir em 1983 o vizinho ilustre, quase de frente: La Mission Haut Brion, um dos chateaux mais reivindicados para ocupar a posição de Premier Grand Cru Classé. Embora seja um chateau de Graves, mais especificamente de Pessac-Léognan, fica difícil manter só o Haut Brion, seu rival vizinho, como exceção na lista dos grandes do Médoc.

Segundo a crítica especializada, inclusive Parker, La Mission Haut Brion tem um estilo mais potente que seu arquirrival Haut Brion com maior estrutura tânica, sobretudo. Sua area de vinhas tintas é 25,44 ha (48% Cabernet Sauvignon, 41% Merlot e 11% Cabernet Franc). São 5000 a 5600 caixa por ano. 100% carvalho novo com 22 meses de maturação. Aqui outra particularidade: a produção dos melhores brancos de Bordeaux ao lado de Hautr Brion. Em uma área de vinhas brancas de 3,74 ha (63% Sémillon e 37% Sauvignon Blanc), são 550 a 650 caixas por ano. 100% carvalho novo de 13 a 16 meses de maturação. Vale lembrar que a partir de 2009 passamos a ter o La Mission Haut Brion Blanc, até então conhecido como Laville Haut Brion.

Não bastasse ter duas estrelas em Bordeaux, a família decidiu expandir seus tentáculos à margem direita, mais espeficamente em Saint Émillion, com a aquisição do Chateau Tertre Daugay, que no início dos anos 1900 tinha suas uvas mais valorizadas que o Ausone. A propriedade foi rebatizada de Quintus e, com duas aquisições posteriores de propriedades vizinhas, soma hoje 45 hectares. Produz um saint emillion de ótima qualidade, com mineralidade.

Uma particularidade: a família Delmas, há 3 gerações, cuida da parte enológica dos vinhos de Clarence Dillon. Não se contrata assessoria externa, uma prática recorrente em Bordeaux, seja em grandes, seja em menos conhecidos.

Na degustação da Clarets, tivemos a oportunidade de degustar:

Dragon de Quintus – safra 2013, 57% de merlot, 30% de cabernet franc e o restante de cabernet sauvignon, 25% de madeira nova. Leve couro, toque de violeta, vinho mais em conta de uma família mítica bordalesa.


Quintus 2013 – Especiarias com uma mineralidade ao fundo, toques mais terrosos. Vinho promissor e que ganhará nas próximas safras.

La Chapelle La Mission 2011 – O Chateau La Tour Haut Brion era um chateau independente ligado ao La Mission. Até 2005, sua última safra, foi considerado tradicionalmente como segundo vinho do La Mission. A partir de 2006, deixa de existir La Tour Haut Brion para ser nomeado o Chateau La Chapelle La Mission Haut Brion como segundo vinho. Safra 2011 foi marcada pela estiagem mais longa em uma primavera, mas aqui mão e terroir fazem a diferença e mostram que até um segundo vinho tem a elegância do La Mission.

Haut Brion 2002 – A safra 2002 foi uma das mais difíceis de Bordeaux nesse século, mas aqui talvez esteja o melhor exemplar desse ano, rival de Latour, que também se sobressaiu. Um vinho elegante, com a maciez do terroir. Um bordeaux de primeiríssima linha com aromas e boca desenvolvidos é uma experiência civilizatória.

Clarté Haut Brion – La Mission e Haut Brion produzem, cada um, cerca de 5 mil garrafas de vinhos brancos em uma safra. Como a produção não é grande, decidiram vinificar em conjunto o segundo vinho – La Clarté, quase um corte meio a meio de sémillon e sauvignon blanc. Belo branco de Bordeaux, elegante, gastronômico, para moqueca. Aqui se mostra por que em brancos Péssac gravita acima das demais.

Sorte e azar de Michel Gros

12 de Novembro de 2023

A família Gros é uma das mais confiáveis da Bourgogne. Os irmãos Anne Françoise, Bernard e Michel e a prima Anne fazem vinhos elegantes e refinados em cada um de seus vinhedos e vinícolas. A prima Anne e Michel disputam quem é melhor, com vantagem para o lado feminino, que possui uma ótima parcela de Richebourg e um raro e excelente Vosne-Romanée Les Barreaux, um village que fica pertinho de Richebourg e do mítico Cros Parentoux.

Michel Gros não teve a mesma sorte. Foi num sorteio com o irmão Bernard que ele perdeu a parcela de 0,2 hectares de Richebourg e ficou com o monopólio de Clos de Réas, um vinhedo premier cru murado na entrada de Vosne-Romanée, que fica de frente ao Domaine Leroy e à prefeitura da cidade onde se diz que não existem vinhos comuns.

O Clos de Réas propicia um vinho profundo, elegante e com grande potencial de envelhecimento, talvez o melhor custo-benefício em premier cru de Vosne Romanée. Nas safras ruins, se vê o bom produtor. Um 2004, com um quase imperceptível toque vegetal da pior safra dos últimos 20 anos, se mostra muito bom, abrindo agora seus aromas terciários. O 2015 é um vinho generoso, amplo e refinado, que deverá atingir seu pico na metade da próxima década.

Foi num sorteio que os Gros decidiram não dividir o monopole Clos de Réas e que o Richebourg foi paras mãos do irmão de Michel

O Aux Brulées é um vinho mais acessível quando jovem, com um leve defumado e uma fruta mais evidente, está um pequeno degrau abaixo do Réas, mas é outro excelente premier cru nas mãos de Michel Gros, com uma vantagem: envelhece mais rapidamente, o que permite que seja bebido mais rapidamente. O 2007, uma safra não no mesmo de outras como 2002, 2005 e 2009, mas que produziu vinhos que desenvolvem aromas terciários com menos tempo em garrafa, está delicioso. O 2015 mostra que será um grande vinho, quase comparável ao ótimo 2005, que já ostenta aromas terciários e as especiarias asiáticas tão frequentes nos Vosnes de alto calibre.

Mas não são apenas os Vosnes que impressionam na visita à cave. O Nuits Saint-Georges village é um ótimo vinho, com o peso do terroir, mas um lado mais elegante que o centro da cidade, por estar mais perto da fronteira com Vosne. O Nuits premier cru é um vinho mais robusto, elegante e profundo, mais uma prova de que o estilo de Michel Gros destaca o terroir bourguignon em qualquer um de seus solos. No nível básico, a novidade é o Bourgogne Haute Cote de Nuits monopólio Fontaine Saint Martin (quatro hectares em Pinot Noir e três em chardonnay), um excelente vinho de entrada. O solo aqui tem uma mistura semelhante à encontrada na montanha de Corton. Até 2014 ele fazia a assemblage desse terroir dentro de seu Haut Côte de Nuits básico, mas a partir de 2015 começou a vinificar em separado. O vinho recebe de 20% a 30% de madeira nova e estagia em madeira por 18 meses.

M. Roulot

11 de Novembro de 2023

(publicado originalmente em outubro de 2017 na última visita ao domaine)

A vida do Domaine Roulot sofreu uma reviravolta em 1982, quando Guy Roulot morreu precocentemente aos 53 anos de idade. Jean Marc, seu filho e o natural herdeiro, queria ser ator e tinha deixado Meursault e partido para Paris para estudar no Le Conservatoire. Naquele mesmo ano, quando seu pai estava de cama, ele tinha participado da colheita, mas, com a morte do seu pai, a família decidiu nomear Ted Lemon como o diretor do Domaine. Duas safras depois, Franck Gux, primo de Jean Marc, assumiu os vinhedos até que, em 1989, Jean Marc Roulot decidiu deixar a atuação de lado e resolveu voltar à origem. Queria provar que sabia fazer vinhos.

Degustação dos vinhos da safra 2019/Video Nadia Jung

As mudanças foram feitas aos poucos. O tempo de afinamento nas barricas subiu de 11 meses para 18 meses, incluindo-se aí o Bourgogne branco, feito com vinhedos atrás do Domaine, um vinho de jardim. A biodinâmica foi sendo adotada aos poucos. O percentual de madeira foi sendo ajustado para cada vinho; grosso modo, o Bourgogne branco recebe cerca de 10%, os villages, 15% a 20%, os premiers crus 25% a 30%. Batônnage pode ser feita, mas depende de julgamento, não é ciência.

O Domaine expandiu seu portfólio no fim dos anos 2000, quando o Domaine Seguin Manoel foi vendido para investidores americanos, que financiaram a aquisição para Roulot e Lafon, que dividiram parcelas. Foi assim que Jean Marc oferece há cinco anos o Clos de Bouchères, o Meursault village, o R, um premier cru com assemblage de vinhedos da região, e ainda abriu um braço negociante com dois grands crus: o Corton e o Chevalier-Montrachet. Desses dois pouco se vê no mercado, já que boa parte das garrafas é dos investidores que financiaram a aquisição. “Não sei o que fazem com seus vinhos”, brinca Roulot, que diz receber dezenas de novas ofertas de expansão do Domaine. “Mas é preciso crescer com inteligência.”

O Bourgogne é um Bourgogne de jardim, um vinho que bate grande parte dos Meursaults existentes, com uma grande capacidade de envelhecimento e uma elegância rara. Um cartão de visita de gente grande. Vem de 4 hectares. Clos de Bouchères é um monopole de 1,37 hectares que chegou às mãos de Jean Marc há pouco tempo, mas já se mostra como um dos melhores terroirs dessa cidadela que não tem grands crus na legislação, por um capricho da complexa legislação francesa e bourguignonne. Esse 2019 é uma criança de berço, mineral, com uma leve especiaria e a complexidade que exige o melhor da culinária.

No livro de @khiemle com perfis de alguns dos melhores domaines da Borgonha, Jean Marc é questionado sobre a arte de harmonizar comida e vinho. Refere-se a um episódio com o mítico Alain Senderens, que por anos manteve uma mesa estrelada quase de frente à Igreja de Madeleine, onde anos antes Steven Spurrier fez história. Na metade dos anos 1990, Jean Marc foi convidado por Senderens para testar algumas harmonizações com a lagosta à baunilha, um dos pratos que trouxeram fama ao chef, considerado na França como o mestre da enogastronomia por longos anos. “Eu fiquei estupefacto porque ele conseguiu ter êxito em fazer transcender o Meursault 1984, que bebido sozinho, não era grandioso.”

Os últimos anos têm trazido vários desafios climáticos. Além dos baixos rendimentos, o Domaine teve de tomar a difícil decisão de tirar as videiras de Tillets em 2015, que tinham sido plantadas em 1970, por constatar que elas estavam cansadas e mais aptas a sofrerem com o clima. O replantio tem sido feito aos poucos, o que fará com que o vinho só seja produzido na próxima década. “Essa é uma das decisões mais dolorosas que um produtor tem de tomar, mas é preciso pensar no longo prazo”, diz.

Roulot também busca se dedicar à atuação e ao cinema, do qual participou de dois filmes recentes, “Diplomacia”, sobre a tentativa fracassada de um general alemão de explodir Paris nos últimos dias da Segunda Guerra Mundial, e “Ce qui nous Lie”, uma história de uma família bourguignone de Meursault que perde o pai viticultor e começa a discutir se mantém a tradição e continua vinificando ou vende a propriedade de olho na oferta astronômica. A história condiz bem com o futuro da Bourgogne.

Pouco mais de 25 anos depois de ter assumido o comando do Domaine, Jean Marc Roulot provou que sabe fazer vinho. Mais: está entre os melhores produtores de vinhos brancos do planeta. Torturado fosse a nomear cinco produtores da Bourgogne, ele estaria na minha lista. Todos seus vinhos são brilhantes, do Bourgogne branco, que vale por um Meursault, ao Perrières, um grand cru em tudo, menos no rótulo. Se um dia vir uma garrafa, com mais idade no restaurante, não hesite: abra a carteira. Roulot faz vinhos de emoção. Não à toa Frédéric Mugnier, quando decidiu fazer um vinho branco, foi conversar com Jean Marc. “Faz tempo que não o vejo”, diz Roulot. Os amantes da sétima arte e de Baco torcem para que Roulot continue atuando e vinificando.

François Bertheau: On y va

11 de Novembro de 2023

Uma das menores cidades da Bourgogne, com pouco mais de 300 habitantes, Chambolle-Musigny produz os mais delicados, finos e femininos vinhos da região. Por entre as ruas, deparam-se com sobrenomes famosos: Mugnier, Roumier, Barthod, Amiot-Servelle, Vogüé, cada um com seu estilo e seus vinhedos. Atrás do restaurante Chambolle, cuja carta de vinhos tem uma das mais completas seleções de rótulos dessa cidadela, fica o Domaine François Bertheau, que só produz Chambolles, com exceção da vinificação de uma pequena parcela de Aligoté, mas esse para consumo próprio.

Ao contrário de seus pares midiáticos, Bertheau, cujos vinhos não são vendidos no Brasil, está fora do radar das principais publicações e evita participar das degustações promovidas pelos guias franceses. Grande parte da produção é exportada para os Estados Unidos, Japão e Europa. Aqui são produzidos um Chambolle-Musigny, um Chambolle Premier Cru (assemblage de Groseilles, Baudes, Noirots and Gruenchers), o Chambolle Musigny Les Charmes, o Les Amoureuses e o Bonnes Mares, mescla entre a terra branca e a vermelha desse grand cru. A vinificação é quase igual para todos, com uso mínimo de madeira, de até 10% a 15%, para que a delicadeza e a sutileza possam transparecer na taça.

François, que assumiu o Domaine em 2003 do seu pai Pierre, faz Chambolles delicados e sutis, com preços que podem ser considerados uma barganha se comparados aos de Mugnier e Roumier, apesar de o primeiro ser líder inconteste nos quesitos: emoção, sutileza, coração e mente.  Há uma particularidade: não há marcação nos barris, Bertheau sabe de cor onde cada vinho repousa, um segredo de um meticuloso e perfeccionista viticultor que gosta de ter controle de cada etapa.

O sucesso das últimas safras fez com que ele não venda mais seus vinhos no Domaine, cujas últimas safras tiveram perdas por causa das condições climáticas, principalmente em 2016, quando os rendimentos foram até 50% menores. A safra 2016 é considerada clássica. O Chambolle-Musigny é vinho delicado e sutil. O Chambolle-Musigny Premier Cru é um degrau acima, um vinho que conjuga fruta, mineralidade e aromas florais, uma aposta certeira para se comprar de caixa. O Les Charmes é um vinho abordável, refinado.

Um dos mais reputados crus da Bourgogne, Les Amoureuses é um terroir mítico. Quatro produtores têm boa parte de seus vinhedos na parcela mais próxima de Musigny, a melhor. Um deles é Bertheau, os outros três são Mugnier, Roumier e Vogüé. Cada um extrai um vinho diferente. Mugnier caminha na linha tênue que separa o encantamento da mediocridade, com um vinho absolutamente espetacular, a essência de um Bourgogne grandioso. Bertheau faz um meio caminho entre a delicadeza de Mugnier e as mãos de Christophe Roumier.

O Bonnes Mares é um vinho colhido em vinhedos de Morey Saint Denis e Chambolle-Musigny, com terras marrons e brancas, um vinho mais possante, rústico em comparação aos outros dois, mas muito bom. A degustação chega ao fim, mas antes de despedir peço um pequeno favor: uma taça a mais de Amoureuses. A vida fica muito mais fácil assim.

Clos de Tart, monopole histórico

10 de Novembro de 2023

Qual o vinho que fez você se apaixonar pela Bourgogne? No meu caso, foi um Clos de Tart 1998, bebido em 2008. Com dez anos de vida, mostrava aromas florais, animais, minerais, de trufas. Na boca, era interminável, tão longo que logo se apontava um defeito: aquele vinho devia ser feito em garrafas Magnum ou double Magnum, assim haveria mais e mais para beber.

Mapa do “assemblage” da safra 16

Qual o melhor vinho jovem bebido? Também no meu caso foi outro Clos de Tart, dessa vez 2005, bebido com menos de três anos de vida, um infanticídio consentido por um amigo de um vinho soberbo, com taninos de seda envolto em um corpo possante, aromas de violeta com trufas e uma fruta que não terminava. Também vinha com o mesmo defeito: a garrafa tinha apenas 750 mililitros e era compartilhada em cinco.

Ambos foram feitos por Sylvain Pitiot, que assumiu o comando do Domaine em 1996, tendo aí feito sua primeira safra. Estudioso da região, com livros e mapas publicados, dividiu os 7,5 hectares do terroir, o maior grand cru em monopólio da Bourgogne, em seis parcelas, com cada uma propiciando um lado para o grande vinho. Depois da “assemblage” das seis parcelas, o Tart é vinificado em 100% de madeira nova por 18 meses até ser comercializado.

O comando do Domaine mudou há dois anos: Sylvain Pitiot se aposentou e agora trabalha de consultor em alguns projetos sociais pelo mundo, tem viajado para o Tibet. Jacques Devauges, que fazia os vinhos do Domaine Clos de l´Arlot (cujo branco em Nuits Saint Georges despertou a vontade de Frédéric Mugnier de criar o Maréchale branco) assumiu a vinificação (deixou o comando do Clos de Tart em 2021 para assumir o vizinho Clos de Lambrays).

Desvauges não fez grandes mudanças, nem alterando a degustação que é feita com exclusivas meia garrafas. Nos tempos de Pitiot, se fazia uma piada dizendo que o Tart era Clos de Tard, se referindo à preferência de Pitiot por colher as uvas mais tarde do que seus vizinhos, em alguns casos uma semana depois do vizinho Clos de Lambraÿs. Agora a data de colheita está igual aos outros. “Não se pode fazer mais essa brincadeira”, sorri Devauges.

A degustação da safra 2016, em barril, é didática. Começa com a parcela que fica perto da RN 74 ao lado do Bonnes Mares de Bruno Clair. Passa pela parcela mais ao norte em que o Clos fica próxima do solo vermelho de Bonnes Mares, um outro vinho, e vai até o outro lado do muro em que o vizinho é o Lambrays. Daria para fazer seis vinhos diferentes, tais as nuances do terroir. “Seria estupidez, juntos eles criam um vinho único”, destaca. Para um amigo, o Tart é o custo benefício quando o bolso não é fundo o suficiente para se comprar um Romanée-Conti. Alia a potência de um Chambertin com a elegância de um Musigny. Vizinho do Lambraÿs, ele é mais incisivo, mais profundo e mais complexo que o rival de mureta. Nos anos menos solares, como 1998, 2001, 2008, produz vinhos de se perder o fôlego.

O 2016 esbanja fruta, um fim longo e taninos suaves, enquanto o 2015 mostra como é primário, com uma fruta interminável e um leve toque de chocolate. O Domaine, que mantém em repouso por 30 anos até a comercialização, seu Marc de Bourgogne, começou a partir de 2011 a produzir um Fine de Bourgogne, que será vendido apenas em 2041. As quantidades são ínfimas. Encontrá-lo é uma tarefa difícil, o lugar mais apropriado na Bourgogne é na Athaeneum, em Beaune.

Vendido no fim de outubro de 2018 por 250 milhões de euros para François Pinaud, dono do Château Latour e do Domaine Eugénie (ex-René Engel, em Vosne Romanée), o Tart tem tudo para continuar no seleto grupo dos grandes vinhos da Bourgogne. Só falta ganhar na mega sena para comprar apenas garrafas magnums.

Domaine Fourrier: a regra Soldera

10 de Novembro de 2023

Gianfranco Soldera faz um dos mais famosos vinhos da Itália. Os críticos gostam de dizer que, mais do que um brunello, ele faz um brunello de assinatura Soldera. Há uma regra aos que o visitam:  não se cospe o que se bebe ali. Porque Soldera diz que só se cospe vinho ruim. Quem quiser cuspir o faça em outro lugar e não o faça perder tempo. Na Bourgogne, não se aplica a regra da Toscana, mas não pude deixar de pensar nisso, ao sair, às 11 horas da manhã de uma terça-feira de outubro da degustação de mais de 20 rótulos do Domaine Fourrier e de seu braço de negociantes. Bebi todos.

Jean Marie Fourrier assumiu o comando do Domaine em 1995, depois de um estágio de três anos no fim da década de 1980 com a lenda Henri Jayer, do qual se lembra mais dos esporros levados do que dos ensinamentos recebidos. Ao contrário de Jayer, não usa 100% de madeira nova, Fourrier busca usar 20% no máximo em cada um de seus vinhos, sejam eles apelações village, sejam grands crus.


Pouco conhecido nos restaurantes e nos cavistas da França, fora do radar dos guias franceses, ele tem seus vinhos disputados no mundo inteiro. Agora a tarefa de comprá-los tornou-se mais fácil: em 2011, ele adicionou um braço negociante, com foco em comprar uvas de terroirs em Chambolle-Musigny, Vosne-Romaneé e ampliar sua coleção de grands crus. Assim Fourrier hoje produz no lado negociante alguns reputados vinhos: faz Amoureuses, Chambertin, Charmes-Chambertin, Latricières. Os vinhos estão um pequeno degrau abaixo dos do Domaine, mas daqui uns anos talvez estejam no mesmo patamar.
Na didática e extensa degustação da safra 2016, em barril, algumas estrelas se destacam. O Gevrey Chambertin Vielles Vignes, de vinhedos plantados entre 1928 e 1955, é um dos melhores villages de toda a Bourgogne, refinado, profundo, gastronômico e o mais fácil de ser encontrado no mercado (o Domaine tem vinhos vendidos desde o fim de 2020 no Brasil pela clarets.com.br).


O Aux Échezeaux proporciona um vinho mais fácil, mais redondo. O Vougeot Petits Vougeots vem de um vinhedo bem perto de Amoureuses, com alguns vinhedos com mais de 80 anos. O Chambolle Musigny Les Gruenchers conjuga o lado mineral (terroir próximo de Fuées) com a delicadeza de Charmes, outro vizinho.

Entre os premiers crus de Gevrey, o Goulots se destaca pela mineralidade, o Combe aux Moines, pelo lado mais masculino e animal, o Cherbaudes, pela elegância, o Champeaux, pela concentração fruto dos vinhedos com quase 100 anos de vida, e o estupendo Clos Saint Jacques, pela complexidade. Um dos cinco proprietários desse mítico terroir, que produz um vinho que para muitos é um grand cru, o Saint Jacques de Fourrier tem algumas uvas plantadas em 1910, o que permite, em alguns casos, como na safra 2015, produzir algumas poucas garrafas de Clos Saint Jacques Vignes Centenaires. Ele é o menor produtor da apelação, com 0,89 hectares. Aqui está o grande rival do Rousseau, em um estilo bem diferente. Provocação: Fourrier é Mugnier, Rousseau é Roumier?

O Griottes Chambertin, um dos mais raros grands crus de Gevrey, cuja produção total soma 1000 caixas em um bom ano, tem toda a elegância desse terroir, em um estilo diferente do produzido pelos Dugats. A paleta dos grands crus, ampliada pelo lado negociante, tem dois destaques: o Amoureuses (sim, para mim é um grand cru, apesar de a legislação dizer que não), um vinho que ainda ganhará muito com as mãos de Fourrier, e um grandioso Chambertin.

Não sei por quê, mas minha sensação foi próxima à que tive quando visitei Frédéric Mugnier, o que não pude deixar de compartilhar na visita. Os vinhos de Fourrier são sutis, delicados, elegantes, emocionantes, não têm peso, nem álcool, que são poemas líquidos e que integram uma partitura, cada um compondo uma música de uma trilha sonora criada por um maestro. Assim como não se jogam fora livros que fizeram sua vida, não se deixam de lado amizades de anos, não se esquecem músicas da adolescência, não se cospem vinhos de gênios.

Latour-Giraud: Meursaults fora do radar

9 de Novembro de 2023

(Originalmente publicado em pisandoemuvas.com)

Há produtores que estão fora do radar das principais publicações, não fazem barulho como outros vizinhos, nem têm suas alocações vendidas meses antes de os vinhos chegarem às prateleiras. Quando aparecem notas a seu respeito, ganham curtos parágrafos, mesmo que elogiosos. Esse é o caso do Domaine Latour-Giraud, com mais de três séculos de história e com a maior área de produção de Genevrières, prestigiado premier cru de Meursault, hoje uma das cidades mais disputadas pelos enófilos por causa dos vinhos cada vez mais estrelados de Jean Marc Roulot, Arnaud Ente, Coche Dury.

Pierre Latour comanda o Domaine Latour-Giraud, que fica na antiga rua que abrigava um leprosário em Meursault. Hoje a rue de l´hopital não existe mais, tendo sido substituída por uma vicinal que corta a cidade e a interliga às cidades de Volnay e Puligny-Montrachet. Nem o GPS tem o Domaine no seu radar. Sorte que o senhor parado por nós sabia como se chegar lá.

Pierre Latour é um homem de cerca de 60 anos, educado e curioso. Nunca tinha recebido brasileiros e queria saber o que nos tinha levado lá. Com cerca de 85% da produção voltada para brancos e 15% para tintos, o Domaine faz Meursaults em um estilo diferente dos feitos por Roulot. Talvez um estilo entre Roulot e Lafon. São vinhos brancos feitos para a guarda, com fruta e um estilo menos mineral, muito gastronômicos. A safra 2014 é considerada por ele uma das melhores dos últimos anos. Em 2015, são vinhos mais acessíveis na juventude, talvez semelhantes aos 2009, sem grande capacidade de envelhecimento.

O Meursault Cuvée Charles Maxime é daqueles vinhos que os críticos pontuam com 89 a 90 pontos, mas que são a mostra de que pontos funcionam no basquete, não nas taças. Um chardonnay gastronômico, opulento, refinado e mineral, de comprar de caixa. O Les Narvaux é mais mineral, outro também para se comprar de caixa. No terreno dos premiers crus, o primeiro a desfilar é o raro Bouchères, com um toque mais acentuado de frutas secas; o próximo é o Poruzots, mais gordo; depois chega o suculento e profundo Charmes.

Pierre Latour comenta que o preço da terra na Bourgogne está cada vez mais alto. Um hectare de premier cru Charmes, em Meursault, pode custar um milhão de euros, o que cria um grande problema para os domaines familiares. A lei de transmissão na França recolhe 30% dos bens a serem herdados para seus cofres e põe pressão sobre o futuro em uma atividade de capital intensivo e sujeita às intempéries da natureza. Pressão ainda maior desde o início da década, quando as safras foram menores do que a média.

O preço alto do terroir faz com que a geração que assume um Domaine tenha de desenhar estratégias para se manter no comando: pode-se vender parte do estoque nas caves, pode-se vender 20% a 30% do domaine para outros viticultores, pode-se chegar até a vender o Domaine todo, tentação para pessoas que nunca viram um cheque tão alto. “Isso preocupa muito e isso traz grandes problemas para a Bourgogne, que é artesanal”, diz Pierre, pai de duas meninas. Ele quer manter a tradição familiar.

Antes de chegar ao Meursault Genevrières, a razão de nossa visita ao Domaine, Pierre Latour abre um Puligny Champs Canet, um dos mais refinados Pulignys, com um toque floral delicado. “É bom ter a oportunidade de fazer um vinho fora de Meursault”, afirma. Com dois hectares e meio de Genevrières, ele resolveu vinificar duas parcelas desse terroir: a normal e a chamada Cuvée des Pierres, geralmente quatro barris de vinho, com as uvas com mais de 50 anos. São dois vinhos distintos, ambos refinados, elétricos, com acidez que mostra um potencial de envelhecimento superior a uma década. Muito interessante seria colocá-lo às cegas em uma degustação com o Perriéres de Jean Marc Roulot.


Os vinhos não vêm para o Brasil, mas são facilmente encontrados nos Estados Unidos e se configuram em barganhas em relação aos preços que Roulot e companhia estão cotados hoje. Pierre Latour não está no radar de muitos, mas definitivamente entrou no meu.

Merci beaucoup, Joël Robuchon

9 de Novembro de 2023

(Originalmente publicado em pisandoemuvas.com em 6 de agosto de 2018, na morte de Joël Robuchon)

Houve um tempo em que não existiam aplicativos, em que a internet ainda engatinhava, em que as companhias aéreas não cobravam para se marcar o assento, em que não havia Trivago e afins, em que o São Paulo era campeão ano sim, ano sim. Faz quase uma década e meia. Foi quando pisei pela primeira vez no Atelier de Joël Robuchon (naquele momento havia apenas um, em Saint-Germain), dica de Amauri de Faria, que, sempre escasso em elogios, disse que Röbuchon e Senderens eram obrigatórios e que o primeiro não errava, quaisquer endereços colocasse seu nome.

A reserva foi marcada para meio dia e meia. A pé cumpri o quilômetro que distanciava o hotel até o endereço em que minha vida mudou. Sentei-me num balcão. Ofereceram uma taça de champagne: Bruno Paillard première cuvée (vendida pela sempre confiável Taste Vin). Abri o cardápio, mas não cheguei a prestar atenção, porque queria saber do garçom o que ele recomendava naquela quinta-feira. Havia uma proposta de alguns pratos que tinham ficado famosos nas mãos de Robuchon.

E o prato principal, um cordeiro de leite, viria com o purê de batata, que poderia ser repetido quantas vezes fosse necessário, não haveria problemas, assegurou o garçom. “O que tem num purê de tão especial?”, perguntei, sem saber de um dos pratos assinatura do chef. “O senhor saberá”, sorriu.

Os lagostins em raviolis trufados e couve flor vieram, o atum, o caranguejo real, veio também pela primeira vez um Meursault. Conhecia de nome a vila da Bourgogne. O produtor era então um desconhecido: Jean Marc Roulot. O vinhedo ainda mais ininteligível: Clos Tessons de mon Plaisir. “Bate muito premier cru às cegas”, disse o sommelier. Me fiz de entendido, mas quando levei à boca entendi que havia vinhos sobrenaturais, que talvez se chamassem premiers crus.


Vieram o cordeiro de leite e o purê. Na primeira garfada, veio o silêncio. Na segunda, a emoção. Na terceira, a constatação: comida e vinho podiam rimar com algo indecifrável, que levava a imagens, sons, gostos, prazeres, amores, emoções, livros, filmes. Perdi o chão. Fui arrebatado por uma paixão incontrolável que une  comida e vinho. Paixão que só cresce, mas que começou mesmo ali na esquina da rue Montalembert número cinco, a alguns quarteirões do Sena.

Por anos, mandei uma legião de amigos e amigas irem para Paris e descobrirem Robuchon, de quem até Odete Roithman, protagonizada pela genial Beatriz Segal, era fã. Não tive a oportunidade, a idade, o conhecimento ou o dinheiro para descobrir Robuchon no Jamin, onde ele fez sua fama e onde ele comandava a cozinha todos os dias com rigor, técnica e emoção. Roberta Sudbrack teve essa sorte.


Eu tenho outra sorte: a de ter por tantos e tantos anos vivido a arte de Roberta, autodidata que aprendeu lendo os livros do hoje lendário Robuchon, no RS, na Lineu Paula Machado, 916, que por tanto tempo chamei de minha casa no Rio de Janeiro.

Espero que minha sorte seja ainda maior e que possa viver muito mais da arte de Roberta no seu novo endereço no Jardim Botânico, onde ela alça novos voos, feliz da vida.

A lenda Robuchon, chamado de maior chef do século XX por publicações francesas, sobreviverá em seus discípulos e nas memórias de quem passou por suas mesas e suas criações.

Merci beaucoup!

PS: quem quiser ter um gostinho do que foi o Jamim, leia esse texto aqui: https://bradspurgeon.com/articles-as-opposed-to-posts/a-dinner-at-robuchons-jamin/

Claude Dugat e a rainha de Chambertin

8 de Novembro de 2023

(originalmente publicado em pisando em uvas; visita feita em setembro de 2017)

Algumas vezes na equação da vida, expectativas altas são diretamente proporcionais a grandes decepções, enquanto um pé atrás pode ser sinônimo de uma queda de joelhos diante da surpresa. Com apenas seis hectares de pinot noir em Gevrey-Chambertin e alguns vinhedos com mais de 100 anos de idade, o Domaine Claude Dugat vinha precedido por alguns comentários de amigos e de alguns críticos de que produzia vinhos extraídos demais, modernos demais, com maquiagem demais, ao gosto do mais famoso crítico de vinhos do mundo.

Da janela da casa de Bertrand Dugat


As notas 99 pontos e 100 pontos dadas por Robert Parker aos Griottes-Chambertin 1990, 1993, 1995 e 1996 tinham tornado todos seus vinhos cultuados e cobiçados por uma legião de enófilos da Europa, Estados Unidos e Japão. Encontrar uma garrafa para comprar era e é uma tarefa nada fácil para um Domaine cuja produção total em um ano sem perdas pode chegar a 30 mil garrafas. Com esse retrospecto, marcar uma visita não era prioridade, até que numa vez, pouco antes da viagem à Bourgogne, numa rodada de perguntas sobre produtores preferidos, a Guria disse que Claude Dugat não era Dugat-Py (primo, cujos vinhos são importados no Brasil pela Mistral) e que ele produzia grandes vinhos.

O email foi mandado, a resposta veio dias depois: uma quarta-feira de outubro às 14 horas. Com Claude e sua esposa Marie Thèrése Gillon curtindo a vida viajando pelo mundo depois de longos anos à frente da propriedade, agora é a vez dos três filhos comandarem o Domaine: Laetitia, Bertrand e Jeanne, que se revezam nos diversos papéis nos vinhedos, na cave e no escritório. Há também um braço negociante (La Gibryotte), em que, diferentemente de outros Domaines, eles não compram as uvas de terceiros e as vinificam, mas compram o vinho já vinificado por outros e o rotulam. “Compramos e rotulamos se está bom, damos a liberdade ao produtor que nos vendeu”, afirma Bertrand Dugat, nascido em 1982.

Grande parte da produção do Domaine é exportada para Estados Unidos, Japão e Europa. O Domaine não vem para o Brasil, sendo que só dois casais de brasileiros já o visitaram. Do Brasil ele sabe pouco. “O Neymar está ganhando 100 mil euros por dia”, diz, apesar de não ser fã de futebol. Os Dugats produzem sete vinhos: o bourgogne, em uma área de 1,5 hectare e uvas plantadas em 1979; o Gevrey-Chambertin, com uma área de 3,39 hectares e uvas de 1955; o Gevrey Lavaux Saint-Jacques (vizinho do Clos Saint Jacques), com 0,3 hectares e vinhedos de 1980; o Gevrey Chambertin Premier Cru, com uvas de Craipillot e La Perrière, de 1960; o raro Griotte-Chambertin, com 0,16 hectares (cerca de 600 garrafas) de 1957; Charmes Chambertin de 0,3 hectares de 1976 e uma minúscula parcela de 0,1 hectares de Chapelle-Chambertin, de 1902. Há um segredo para os amantes de charutos: uma minúscula produção de Marc de Bourgogne. “Nós somos simples, somos homens da terra e queremos vinhos simples.”

Os premiers e grands crus passam por 100% de madeira nova, o Gevrey Chambertin por 60% e o Bourgogne em barris com um ano de uso. A safra 2016, provada na degustação no barril, teve perdas relevantes nos vinhedos por conta das condições climáticas em abril do ano passado, o que reduziu a produção em alguns casos em mais de 30%. “A safra é clássica”, define Bertrand, que também se mostra otimista com a qualidade e a quantidade da safra de 2017, talvez parecida com 1999, considerada uma das melhores dos últimos 30 anos.

A degustação começa pelo Bourgogne, candidato a melhor genérico regional já bebido e que bateria muitos Gevreys villages de diversos produtores. Com bom potencial de guarda, é um convite para se subir aos outros degraus. O Gevrey Village parece ser um premier cru, tal seu conjunto. “Esses dois são mesmo um Bourgogne e um Gevrey?”

“A gente não muda os barris para a degustação, não”, diz Bertrand, desconfiado. “Desculpe-me, não quis ofender, mas, ao contrário, elogiar a qualidade”, respondo. O Gevrey Premier Cru é ótimo, mas o Lavaux Saint Jacques é a estrela, um vinho que dá muita vontade de colocar às cegas numa degustação com o Clos Saint Jacques do Rousseau; acredito que não haveria derrotados.

O Chapelle Chambertin, com dois barris, vinhedos centenários, produz um vinho mais fechado, mais masculino, feito para durar décadas. O Charmes-Chambertin é um vinho para ser degustado com menos tempo de garrafa, masculino, potente. E o Griotte? “A rainha de Chambertin?”, pergunta Bertrand, quando percebe meus olhos marejados pela emoção de degustar um vinho que arrepia a pele e não termina na boca. Sem voz, concordo com a cabeça, imortalizando na minha memória cada nuance de um vinho inesquecível, com um futuro glorioso. É a estrela dos Dugat, o que tem rendido problemas. “Meu pai participou de uma degustação na Ásia com o Allen Meadows em que um vinho era falsificado.”

O passeio está quase no fim: há um barril de Marc de Bourgogne, feito para um grande charuto, talvez um Hoyo de Monterrey Double Corona. Os vinhos são feitos para a guarda, com dez, quinze, vinte anos, abrem todas as camadas que um pinot pode proporcionar, apesar de já mostrarem ao que vieram desde cedo. Claude Dugat pode descansar e viajar pelo mundo em paz. Os filhos comandam hoje um dos melhores Domaines da Bourgogne. Se um dia encontrar uma garrafa com o rótulo Claude Dugat, em algum lugar do planeta, não hesite: compre-a. E lembre-se de que na equação da vida é essencial ter o mínimo de preconceitos, a maneira mais tola de viver a vida.