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A Alemanha da Cave Leman

28 de Maio de 2024

Há 100 anos, quando se ia jantar no Ritz e se folheava a carta de vinhos, os preços de rieslings alemães se destacavam, com cifrões mais altos que os franceses, fossem eles da borgonha ou do rhône. Chamada pelos críticos de rainha das uvas, a riesling, com seu alto potencial de envelhecimento e versatilidade ímpar sobre a mesa, ganhava páginas em vários restaurantes mundo afora.

Vieram os anos 1960 e 1970 e os vários Liebfraumilch começaram a ganhar as gôndolas do mundo, chegando a alcançar perto de 60% de todos os vinhos exportados pela Alemanha. Em grande maioria, os produtores usavam Müller-Thurgau, Kerner, Sylvaner e quase nada, ou nada, de Riesling, em vinhos que custavam pouco, eram leves e doces e deixaram milhões de consumidores com a ideia de que vinho alemão não era sinônimo de qualidade. Aqui no Brasil a garrafa azul fez vítimas também.

Se a França e principalmente a Borgonha vivem hoje o ápice da popularidade, com uma vertiginosa ascensão de preços, a Alemanha, apesar de uma alta de preços nos últimos anos, é hoje o mais subestimado produtor de vinhos do planeta vitis. Foi isso que conversávamos na última segunda-feira de maio de 2024 em meio a rótulos tedescos importados pela @caveleman, de Marcio Morelli, que está construindo um portfólio de vinhos alemães que fará história no país.

Há estilos, mãos, filosofias e terroirs tão diferentes, que se comprova que a qualidade não está apenas na riesling, mas em chardonnay e pinot noir. No princípio, a única intrusa na degustação: champagne, Marie Courtin, Efflorescence, safra 2017, terroir da Côte des Bars (Aube). Dominique Moreau criou a casa em 2005 em um terroir com fama para a produção de pinot noir, videiras de 45 anos.

Dominique faz vários cuvées, mas a maior parte de sua pequena produção é dividida entre seus cuvées Résonance e Éfflorescence, a primeira fermentada em aço inoxidável e envelhecida por 24 meses sur lattes (período de tempo no qual as garrafas de Champagne ficam armazenadas em posição horizontal, como parte do processo de produção que inclui a segunda fermentação, chamada na região de prise de mousse), e o último é fermentado e envelhecido em barricas usadas, seguido de 36 meses sur lattes. Dominique Moreau faz belos vinhos, sempre extraindo um lado elegante e floral em suas criações (a rosé Indulgence é obrigatória). Na Éfflorescence, o lado floral delicado está ali. Tentaria harmonizar com codornas e morilles.

Da Champagne vamos para a Alemanha. Primeira parada: Rheingau. Hans Josef Becker, apelidado de Ha-Jo. São pouco mais de dez hectares de uvas, 80% delas riesling, com produção tradicional, mantidas em contato com as leveduras o máximo de tempo possível. “Meus vinhos são ricos e potentes, não precisam de açúcar residual”, disse ele a Stephan Reinhardt, no excelente “The Finest Wines of Germany”. O Spatlese trocken Wallufer Walkkeberg er 2012 tem um aroma que mescla maracujá, mel, toque floral e na boca a mineralidade da pedra de ardósia. Harmonizaria com as ostras do Baru Marisqueria. Que beleza de riesling!

Segunda parada: wasenhaus. Christoph Wolber e Alexander Götze administram essa vinícola em Staufen, ao sul de Freiburg i. Amigos desde os estudos de enologia em Beaune, na Borgonha, fundaram a propriedade em 2010. Trabalharem por lá em grandes domaines como Pierre Morey, Comte Armand, De Montille e Leflaive, e decidiram regressar à Alemanha, onde criaram a Wasenhaus . Escolheram a região vitivinícola de Baden, num vale que os separa das montanhas francesas dos Vosges e dos vinhedos da Alsácia. A primeira safra Wasenhaus é 2016. Em pouco tempo, eles fizeram barulho. Diga-se de passagem: aqui não são apenas os tintos que merecem mergulho, o chardonnay é uma beleza, com uma mineralidade instigante ao fundo, feito para frutos do mar e para a comida do Sororoca ou o ótimo peixe do Virado.

No capítulo tintos, o grand ordinaire é um glou glou delicioso, extremamente perigoso, com um claro defeito: deveria ser em garrafas magnums. O spatburgundner 2021 é um belo vinho, elegante e às cegas também provocaria confusão em uma degustação com pinots franceses. Pureza de fruta, pitangas, elegância. Põe no seu caderninho, virão outros rótulos dessa casa, que merecerá post à parte porque aqui nós estamos falando de um dos produtores de elite da Alemanha.

O estilo da Wasenhaus é bem diferente do clássico de Martin Wassmer, o que prova que Marcio Morelli vai aos poucos compondo uma sinfonia de notas que ao fim criam uma melodia de se aplaudir de pé. Dois destaques de Wassmer: o excelente Schlatter, que em 2018 está pronto (apesar de que em três a cinco anos ele ganhará toques terciários bem instigantes) e em 2019 ainda esbanja juventude. Hedonismo agora ou amanhã? A 391 reais se torna uma excelente qualidade preço. Harmonizaria com o shoulder de wagyu do Virado.

No nível grand cru, a contraposição entre Castellberg 2015 e o 2014 Maltesergarten, dois belos pinots, com minha preferência recaindo sobre o último, um terroir que fica entre a floresta negra e o vale do reno. Com dez anos de vida, ainda está na juventude, tem um final de boca que mostra profundidade e, claramente, demonstra por que a Alemanha é o mais subestimado dos produtores de vinhos brancos e tintos do planeta vitis.

Que os átrios e os ventrículos de Marcio Morelli continuem pulsando e fazendo com que a Alemanha chegue ao Brasil em sua melhor forma. Os apreciadores de Baco só podem agradecer. Virão ainda muitas novidades da Cave Leman, de Baden a Franken. Se Adolar Herman fez história nos anos 2000, agora um sobrenome italiano escreverá as linhas tedescas por aqui.

Prost!