Neste blog fizemos menção em várias oportunidades sobre os vinhos botrytisados. Regiões como Sauternes, Tokaj (Hungria), algumas regiões do Vale do Loire, Alsácia e também da Alemanha, são clássicas nesta categoria de vinho. Neste artigo, vamos explorar tecnicamente um pouco mais este fenômeno raro e que sem dúvida nenhuma, é responsável pelos melhores vinhos doces do mundo.
O fungo Botrytis Cinerea na agricultura, ou seja, não só na viticultura, apresenta-se de forma não tão rara como se imagina e mais, da forma mais nefasta possível. Botrytis em grego quer dizer cacho de uvas, forma habitual da colônia de fungos na infestação dos grãos de uvas. Cinerea vem de cinzas, relacionada ao aspecto visual da mesma infestação. Aliás, “podridão cinza” é o nome dado à atuação nefasta deste fungo na maioria das vezes nos vinhedos e portanto, torna-se uma praga. Em condições climáticas específicas, ou seja, manhãs brumosas e dias ensolarados, está atuação torna-se uma benção, chamada então de “podridão nobre”, ou noble rot, ou pourriture noble, ou muffa nobile, ou edelfäule (alemão). Estas condições ocorrem com alguma frequência nas regiões clássicas acima citadas.
Tomando como exemplo a região bordalesa de Sauternes, imortalizada pelo magistral Château d´Yquem, o fungo ataca os grãos de uvas perfeitamente maduros naquelas condições climáticas específicas. Com a pele relativamente frágil, o fungo consegue perfurar o grão de uva provocando uma reação natural da planta. Em outras palavras, a planta entende que houve uma invasão, uma agressão, e isto precisa ter uma resposta. A partir deste fato, haverá uma luta entre a planta e o fungo invasor, e uma série de substâncias serão sintetizadas beneficiando nós consumidores, com aromas, texturas e sabores únicos.
A primeira constatação da infestação é a desidratação do grão pela evaporação da água, aumentando a concentração de açúcar, a despeito de parte do mesmo ser metabolizado pelo fungo. Parte dos ácidos também são metabolizados, preferencialmente o ácido tartárico. Mesmo assim, há uma expressiva preservação da acidez, sobretudo do ácido málico, mais forte e mais eficiente para equilibrar a alta concentração de açúcares. Nesta luta, há produção de ácido glucônico, sem impacto sensorial, mas uma prova laboratorial irrefutável da incidência de Botrytis no vinho. A infecção secundária inevitável nos grãos de uvas por bactérias acéticas acaba gerando pequenas doses de ácido acético e acetato de etila, responsáveis pelos aromas de acetona e esmalte de unha. Uma das reações da planta é a formação de diversos polialcoóis, em particular, aumento substancial do glicerol, gerando sensação de doçura e principalmente, untuosidade. Outras reações importantes são a síntese de sotolon e de álcoois, gerando aromas de curry, mel, especiarias, açúcar queimado, nozes e cogumelos.
Observem no vídeo abaixo (Château d´Yquem) o grau de botrytisação nos cachos de uvas que é sempre irregular. Daí, a necessidade de várias passagens para colheita no vinhedo. Outro ponto importante, é a viscosidade do mosto e do vinho na taça.
Quanto à variedade da uva, as cepas relativamente neutras como a Sémillon na região de Sauternes levam vantagens. Alterações como hidrólise dos terpenos e as esterases provocadas pela infecção do fungo, acabam de certo modo neutralizando os aromas primários e frutados das uvas, ou seja, todas as reações acima citadas acabam prevalecendo aromaticamente sobre a tipicidade da uva em questão. Só para esclarecer, terpenos são substâncias responsáveis pelos aromas típicos de cada variedade de uva, enquanto os ésteres de fruta respondem pelos aromas frutados dos vinhos. Conforme exposto acima, estes dois fenômenos são neutralizados.
Em resumo, a perspicácia do homem soube tirar proveito de situações normalmente desastrosas, mas que em condições especiais, tornam-se especialmente interessantes, fornecendo uvas e consequentemente mostos de características únicas e assim, nos proporcionando vinhos extremamente singulares e exóticos, os vinhos botrytisados.
Etiquetas: ácido glucônico, botrytis cinerea, chateau d´yquem, esterases, glicerol, Nelson Luiz Pereira, noble rot, pourriture noble, sauternes, sémillon, sommelier, sotolon, terpenos, tokaji, trockenbeerenauslese, tudo e nada, vinho sem segredo
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