Filosofias: Bourgogne e Bordeaux


Numa garrafa de Bourgogne ou Bordeaux há muito mais filosofia do que se pensa. Evidentemente, estamos falando dos grandes vinhos destes míticos terroirs. A despeito da enorme diferença do solos, climas e uvas envolvidas, o fator humano me parece ser mais decisivo e mais apaixonante. Um dos encantos da França é classificar, selecionar e individualizar certas filosofias sobre seus vinhos.

No caso da Bourgogne, Deus presenteou um terroir abençoado, sobretudo no que chamamos de Côte d´Or (não é costa dourado e sim, costa do oriente). As duas colinas (Côte de Beaune e Côte de Nuits) foram concebidas em plena harmonia na composição de seus solos, drenagem e insolação perfeitas e clones criteriosamente adequados ao plantio. Couberam aos monges cistercienses o devido tempo e paciência para formar perfeitamente o intrincado mosaico de vinhedos com classificações hierárquicas muito bem definidas.

Já no caso bordalês, a natureza não foi tão privilegiada a principio, sobretudo na sub-região do Médoc, a chamada margem esquerda de Bordeaux. No final da idade média, tínhamos sérios problemas de drenagem na região que sofria com cheias periódicas do Gironde. A solução foi contratar engenheiros holandeses, especialistas em represamento de águas, para drenarem toda a região. Assim o presente divino começa a ser desvendado. Encontrou-se então um solo e subsolo de destacada pedregosidade  e com grande capacidade de escoamento de águas. Nessas condições aliadas ao clima moderado com a influência do Gironde, a Cabernet Sauvignon encontrou seu lar ideal. Mas não foi só isso. Do lado do Atlântico, o avanço das grandes dunas de areia, mais a umidade e salinidade dos ventos marinhos tiveram que ser barradas. A solução foi uma enorme floresta de pinheiros com mais de um milhão de hectares, chegando até os Pirineus, divisa com a Espanha. Portanto, podemos dizer que Bordeaux, ao contrário da Bourgogne, foi um terroir forjado pelo homem.

Agora vem a parte filosófica, talvez a mais interessante. No Médoc sempre reinou a aristocracia, os imponentes châteaux e uma polêmica classificação exclusiva e imutável (classificação de 1855). Contudo, a concepção do vinho bordalês parte de uma visão socialista. Em propriedades que chegam perto de cem hectares, às vezes um pouco mais, o vinhedo é dividido em inúmeras parcelas, mesmo em se tratando de uma das uvas, ou seja, parcelas de Cabernet Sauvignon, Merlot, Cabernet Franc e uma pitada de Petit Verdot, quando muito. Após vinificação individual das parcelas, opta-se pelo famoso Assemblage, o chamado corte bordalês. É aí que entra o socialismo: “a união das parcelas para um todo melhor”. Normalmente faz-se dois assemblages. Um para o “Grand Vin”, com as melhores parcelas degustadas e o restante, para o chamado “segundo vinho do château”.

clos de tart 1996

Dois belos monopólios

Já na concepção da Borgonha, as propriedades dos melhores domaines não passam de cinco hectares de vinhas. Números acima destes são verdadeiras exceções. Curiosamente, sua filosofia de vinho muda completamente. Após a Revolução Francesa, os vinhedos borgonheses foram todos fragmentados e repartido entre as famílias. Porém, a concepção do vinho continuou a mesma. Parcelas pequenas de vinhedos com uma só uva para tintos (Pinot noir) e uma só uva para brancos (Chardonnay). Com isso, temos uma visão aristocrática do vinho. Embora a fragmentação dos vinhedos tivesse uma ideia mais igualitária entre os viticultores, cada parcela sempre foi individualizada e hierarquizada no rígido sistema de classificação (Grand Cru, Premier Cru, Villages, …). Portanto, os melhores vinhos não se misturam com os plebeus, uma divisão de castas em todos os sentidos. São vinhos extremamente elitizados onde a procura pelos melhores produtores é uma constante, além das complicações de safras.

clos de tart

Clos de Trat: Concepção curiosa

Sou suspeito para falar do vinho acima, o belíssimo Clos de Tart. Provei uma garrafa safra 1988 ano passado e ainda estava longe de estar pronto. Talvez o mais enigmático dos borgonhas, tanto quanto o imaculado Romanée-Conti. Entretanto, bem mais em conta, naturalmente neste padrão de qualidade e relativismo. Mas vamos à sua concepção. Trata-se de uma propriedade extensa para padrões borgonheses. É um monopólio de 7,5 hectares repartidos em várias parcelas ao longo da colina. As zonas no alto da colina com solos de marga (mistura judiciosa de argila e calcário), bem como as zonas carbonatadas contando com vinhas antigas agregam parcelas privilegiadas. Reparem na diferença de altitudes entre a parte baixa e alta da colina. Exatamente, na faixa dos Grands Crus (entre 250 e 300 metros).

O assemblage das parcelas juntamente com a ideia de se conceber um “Grand Vin” e um “segundo vinho” tem de certo modo uma vertente bordalesa. O primeiro está classificado como Grand Cru e o segundo vinho  etiquetado como Premier Cru. Que o doutor Roberto, borgonhês juramentado, me perdoe a ousadia. Os vinhos são respectivamente Clos de Tart Grand Cru Monopole, e La Forge de Tart Morey-Saint-Denis Premier Cru.

A taça não corresponde ao vinho

Há também paradoxos no lado bordalês, sobretudo em Pomerol, com uma área total de 800 hectares de vinhas. Um lado borgonhês na chamada margen direita, com propriedades pequenas e sem a imponência do Médoc. Se compararmos com o total de área para brancos e tintos da Borgonha de primeira linha (Grand Cru e Premier Cru), temos algo como 3.500 hectares de vinhas. Separando ainda o joio do trigo, podemos reduzir seguramente para metade desta área. Os números começam a ficar próximos.

Só para destacar um dos grandes vinhos de Pomerol, acima temos o Château Le Pin com 2,7 hectares de vinhas, não produzindo mais do que 5.000 garrafas por safra. A base do vinho é praticamente Merlot com pitadas de Cabernet Franc. É elaborado apenas o “Grand Vin” numa concepção bastante borgonhesa.

Um fator altamente decisivo na opção destas filosofias é o tamanho das propriedades. Tanto de um lado, como de outro, Bordeaux e Borgonha se confundem em aspectos de concepção dos vinhos, conforme exemplos acima. Pondo um pouco mais de lenha na fogueira, a famosa frase de Friedrich Engels, uma marxista convicto. “Um momento de felicidade: Margaux 1848”. Um vinho aristocrático, mas com concepções socialista, onde o conjunto das partes forma um todo melhor.

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2 Respostas to “Filosofias: Bourgogne e Bordeaux”

  1. roberto Says:

    A assemblage do Clos de Tart é uma ideia que o Sylvain Pitiot adotou desde sua primeira safra, em 1996. Realmente, apesar de me causar calafrio, tem uma ideia bordalesa nela.
    Na Bourgogne, a revolução francesa repartiu os terroirs em dezenas de mãos. O que ocorreu com Bordeaux? os proprietários dos châteaux mantiveram suas propriedades? Por que essa distinção?

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